O governo enfrenta pressão interna e externa para escancarar os arquivos da ditadura e incuba uma crise com os militares, que relutam em revelar papéis que pertencem à história do País. A reportagem de ISTOÉ teve acesso a um pacote de documentos secretos de períodos diferentes da ditadura. Em março de 1972, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici baixou as normas do cerimonial para solenidades oficiais. A primeira assinatura foi de Alfredo Buzaid, ministro da Justiça. Estabeleceu-se, no decreto, o tratamento à Igreja: “Os cardeais da Igreja Católica, como possíveis sucessores do Papa, têm situação correspondente à dos príncipes herdeiros.” Protocolarmente era assim, mas os documentos sigilosos da ditadura mostram que Médici e Buzaid preferiam tratar a Igreja como inimiga. No dia 15 de abril de 1971, Buzaid recebeu sob a chancela de “confidencial” uma determinação emanada do Gabinete Militar, à época chefiado pelo general João Baptista Figueiredo. A ordem era endurecer contra a ala progressista da Igreja – expulsar padres estrangeiros e manter a repressão – e foi repassada pelo chefe do SNI, general Carlos Alberto da Fontoura. O documento é uma “orientação para o Senhor Ministro da Justiça” e foi consequência da audiência ocorrida dias antes – 25 de março – entre o presidente Médici e Buzaid, na qual a ofensiva contra o clero foi tratada.

Naquela audiência, Buzaid listou seis temas cabeludos na sua agenda de despacho com Médici no Planalto. Abria com uma proposta de lei de fidelidade partidária que blindava a Arena, partido criado pelos militares, contra traição de voto ou deserção parlamentar. A seguir, tratava da expulsão do País do jornalista francês François Pelou, correspondente da agência France Press denunciado pelos militares como “subversivo”. O terceiro item era um inquérito policial-militar (IPM) contra o bispo Waldir Calheiros, de Volta Redonda, um dos religiosos mais odiados nos quartéis. O quarto tema da agenda era o pacote de novos projetos de código penal e a lei de compra de terras por estrangeiros. O quinto item proibia filiados da Arena de apregoar vantagens da criação de um terceiro partido, além do MDB oposicionista. O último tratava da indicação de um ministro para o Supremo Tribunal Federal. No alto da página, um manuscrito de três linhas endereçado ao Gabinete Militar esclarecia que o signatário “não tinha elementos para decidir” sobre o item 3. Assinado, “E.G. Médici”. Além do IPM contra o bispo Calheiros, Buzaid indagava, ali, qual a determinação do presidente sobre a “Comissão Bipartite”.

Semanas antes, Médici havia consentido que o general Antônio Carlos da Silva Muricy, chefe do Estado-Maior do Exército e veterano da conspiração que derrubou João Goulart em março de 1964, organizasse reuniões secretas de militares das Forças Armadas com a cúpula da Igreja Católica para evitar uma inédita ruptura entre as duas instituições, já que os progressistas corriam o mundo para denunciar torturas e mortes nas masmorras brasileiras. As 23 reuniões da chamada “Comissão Bipartite” ocorreram entre 1970 e 1974. Dezoito dias depois do despacho presidencial, em 12 de abril, o general Figueiredo dirimiu as dúvidas de Buzaid, produzindo um documento confidencial – um dos poucos conhecidos da relação Igreja/Estado – que revela que os militares tinham outros segredos, além dos encontros. A Informação 179 de Figueiredo, encaminhada ao SNI, virou “orientação”, 72 horas depois, para Buzaid indiciar o bispo num segundo IPM e pedir à CNBB a retirada do País de religiosos dominicanos e do padre francês Michel Marie Le Ven, acusado de envolvimento com operários e estudantes em Belo Horizonte. “Caso não saiam por esse meio, expulsá-los do país”, orienta o general Fontoura no Aviso nº 223, de 15 de abril.

Enquanto se tentava oficialmente um acerto intramuros, o regime militar decidia sigilosamente desidratar as negociações e endurecer com os bispos, conforme revelam agora os documentos confidenciais dos generais. “As manifestações da alta hierarquia eclesiástica não reconhecem como subversivas as atitudes de elementos do clero apontadas como tal pelos elementos de segurança (…) A triste verdade é que a Igreja Católica em sua quase totalidade optou pelo Socialismo, ou pela Socialização, o que dá na mesma. Mesmo que a alta hierarquia no Brasil, isto é, o Cardeal e a CNBB, quisessem reprimir os padres subversivos, faltar-lhes-ia autoridade para isso”, ataca o chefe do Gabinete Militar.

Criado na doutrina da hierarquia e conformado pela cadeia de comando da caserna, o general Figueiredo estranha a verticalização que torna cada padre um subversivo potencial abençoado pelo Vaticano: “(A Igreja) está organizada em dioceses, chefiadas por bispos ou arcebispos, que são subordinados diretamente ao Papa. Há mais de 200 dioceses no Brasil. Não seria possível entrar em acordo individualmente com cada um dos seus chefes.” Figueiredo, que assumiria o SNI em 1974 e seria o sucessor do próprio Geisel no Planalto em 1979, joga no alarmismo: “Já há provas de que a própria autoridade dos bispos está sendo contestada pelos padres.” O general, além de considerar “inóquo” (sic) um acordo com a Igreja, acha que ele enfraqueceria o Governo, “porque reconheceria o direito de intervenção da Igreja naqueles assuntos”. A conclusão de Figueiredo é melancólica: “Não há acordo possível, o Governo não pode e não deve esperar nada da dita hierarquia, o Governo deve manter a iniciativa da repressão contra os subversivos.” Figueiredo encerra com uma proposta de dupla face que resume a tática do morde-assopra dos militares. No lado A, assopra propondo “prosseguir as conversações com a alta hierarquia da Igreja: Papa, Cardeal, CNBB, etc” e, “se necessário, cortar determinadas subvenções”. No lado B, morde sugerindo “manter a iniciativa da repressão dando prosseguimento aos IPM na Justiça depois de devidamente estudados pelos promotores e mediante autorização do Governo para cada caso”. Para não deixar dúvidas, o general mostra os dentes da mordida: “Expulsar, ou fazer retirar, os padres estrangeiros que se envolverem em subversão”. A decisão de Médici, entre as sugestões de Figueiredo, mostra que a intenção era “impedir a intervenção da Igreja nos assuntos que não são da sua competência” e por isso mandou tocar os inquéritos.

No mesmo papel, Médici manda continuar a perseguição ao bispo de Volta Redonda, que denunciava a repressão e mortes no oeste fluminense. “As atitudes de D. Waldir têm sido acintosas e provocadoras, deixando bem clara a intenção de desmoralizar as autoridades civis e militares”, diz Médici, no documento subscrito por Figueiredo. Lembra que ele foi indiciado em dois IPMs, que “seus crimes estão perfeitamente caracterizados e comprovados” e por isso pede sua condenação. Aparecem como favoráveis “ao sistema socialista” outros nove bispos. Entre eles Helder Câmara (Recife), Antônio Fragoso (Crateús/CE) e Fernando Gomes dos Santos (Goiânia). O governo mandou arquivar o IPM contra Santos porque a situação estava calma naquele Estado, graças a ações de delatores não identificados. “(…) Há dois elementos indiciados que passaram a cooperar com as forças de segurança e que têm dado informações preciosas. A tranquilidade na área de Goiânia é devida, em grande parte, a essas informações.” Dez anos depois, o País avançava na redemocratização, mas a linha dura mantinha a vigilância em seus alvos.