No ano do bicentenário de nascimento do pesquisador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido também como Allan Kardec (1804-1869), o codificador das doutrinas espíritas, o Brasil dá sintomas de estar sendo tomado por uma onda rica. Por sua carga de polêmica e mistério, ela desafia a credulidade dos crédulos e o ceticismo dos céticos. Poucas vezes nos últimos tempos os assuntos relacionados ao espiritismo e a suas variações tiveram tanto espaço nas agendas do País. São lançamentos de todos os tipos, simpósios, congressos, livros, minisséries, documentários e até um longa-metragem, que será produzido pela Lumière. E a locomotiva desse movimento, que colocou essa doutrina espírita na ordem encantada do dia, é um fenômeno editorial do outro mundo: espantosos 175 mil exemplares de dois livros do jornalista Marcel Souto Maior, As vidas de Chico Xavier e Por trás do véu de Ísis – uma investigação sobre a comunicação entre vivos e mortos, vendidos nos últimos 12 meses.

O primeiro livro é a biografia de Francisco Cândido Xavier, o brasileiro considerado o maior médium sensitivo do mundo em todos os tempos.  Nascido numa família pobre de Pedro Leopoldo (MG), em 2 de abril de 1910, filho de pais analfabetos, Chico tinha a mediunidade mecânica, aquela em que o espírito faz o mediador escrever independentemente de sua vontade. Essa escrita foi definida por Allan Kardec como preciosa, por afastar dúvidas sobre o teor da mensagem. Chico dedicou 74 de seus 92 anos ao trabalho espiritual. Vendeu mais de 20 milhões de exemplares dos 412 livros que psicografou, mas não ficou com um centavo – doou toda a renda para instituições de caridade, num ato registrado em cartório. “Não escrevi nada – ‘eles’ escreveram”, dizia. Quando havia frustração porque as mensagens não vinham, sentava com os visitantes, os consolava e, às vezes, chorava com eles. “Infelizmente, o telefone só toca de lá para cá”, explicava. “Foi o maior. Sua grandeza impossível de ser dimensionada abriu caminho para que todos nós pudéssemos ser tratados com dignidade”, resume o médium Robério Alexandre Bavelone, o Robério de Ogum. “Sou apenas um radinho de pilha.  O Chico era a Embratel”, diz o psicógrafo Celso de Almeida Afonso, em Por trás do véu de Ísis. Chico morreu no dia 30 de junho de 2002, mesmo dia da conquista do penta na Coréia/Japão.

Até agora, 35 mil exemplares de As vidas editados pela Rocco e 120 mil retirados dos fornos da Planeta foram vendidos. Para se ter idéia da dimensão do feito, uma tiragem vendida de cinco mil exemplares é considerada bem-sucedida no Brasil. Se fosse CD, a obra teria emplacado o disco de ouro (100 mil exemplares) e estaria caminhando, na velocidade vertiginosa da psicografia, rumo aos 250 mil da platina. O segundo livro, Por trás do véu de Ísis, uma reportagem de fôlego com casos impressionantes de mensagens psicografadas e de outras notícias do mundo de lá, trilha o mesmo caminho. Lançado há apenas dois meses, teve 30 mil exemplares impressos logo de cara. Desses, mais de 20 mil já evaporaram das prateleiras. Souto Maior descobriu histórias capazes de gerar impacto e comoção. ISTOÉ selecionou algumas delas, contadas aqui pelas personagens descobertas pelo autor. Os direitos de As vidas já foram vendidos à Lumière. Em parceria com a Globo Filmes, será transformado num longa-metragem, que deverá ter suas filmagens iniciadas em 2005, e depois numa minissérie. Por trás do véu de Ísis, por enquanto, está negociado para ser a base de um documentário. Aliás, um fato curioso chamou a atenção recentemente. Na quinta-feira 28 de outubro, o deputado federal Luiz Carlos Bassuma (PT-BA), kardecista, incorporou uma entidade em plena Câmara dos Deputados, na presidência da sessão.

Há outros livros importantes na nova safra. Um deles é O grande mediador – Chico Xavier e a cultura brasileira, do antropólogo Bernardo Lewgoy. Mas a maior parte das atenções está, sem dúvida, voltada para os dois best-sellers de Souto Maior, um carioca de 38 anos com a carreira profissional marcada pelo rigor e solidez. Formado na PUC-RJ, foi correspondente do jornal Correio Braziliense no Rio de Janeiro e trabalhou na sucursal carioca de O Estado de S.Paulo. Foi subeditor do Caderno B e da revista Programa, ambos do Jornal do Brasil. Na tevê, chefiou uma das editorias do Fantástico, da Rede Globo, e, como editor executivo, ajudou a implantar o projeto do canal de notícias Globo News. De volta à Globo, agora como roteirista, ajuda a criar a programação dos 40 anos da emissora, para 2005. Nem precisaria ser o cético que é para pisar com credibilidade no terreno movediço das causas espirituais. Nesta entrevista a ISTOÉ, ele explica como abordou o tema e relata episódios em que esteve envolvido em mistérios.

ISTOÉ – Como foi para um cético mergulhar no universo da espiritualidade?
Marcel Souto Maior –
As pessoas me cobram: “Mas você não se converteu?” Digo que alguns episódios me balançaram, mas que não posso assumir uma doutrina enquanto não tiver certeza sobre o fator que gera tudo isso. Muitas vezes, encontrei erros, fraudes e pessoas que consideram tudo uma farsa. Relato tudo sem dourar a pílula. Também busco explicações científicas, como a tese da glândula pineal, que seria localizada no centro do cérebro, uma idéia defendida pelo psiquiatra e pesquisador Sérgio Felipe de Oliveira, da USP, fundador do Pineal Mind Instituto de Saúde. Fiz o trabalho com seriedade, a consciência está leve, mas não nego que me deparei também com episódios misteriosos. E até fui envolvido em alguns deles.

ISTOÉ – O primeiro partiu de uma mentira sua para Chico Xavier, não?
Souto Maior –
Exatamente. Dez anos atrás, hospedei-me num hotel em Uberaba. Chico estava doente e raramente aparecia no centro. Após dias de plantão, ele surgiu, sentou-se e começou a ler um texto. Estávamos eu e mais cinco pessoas. Aí veio a arrogância do jovem da cidade grande, a arrogância motivada pela ignorância, mas que acabou sendo útil. Parei em frente dele e mandei: “Sou um jornalista do Rio de Janeiro e vim pedir permissão para escrever sua biografia.” Assim, na lata. Ele levantou a cabeça, sorriu e disse: “Só Deus autoriza.” Devolvi: “E Deus autoriza?” Ele deu novo sorriso. “Sim, autoriza. Fale primeiro com os meus parentes e amigos e só depois comigo, pois estou muito doente.” No dia seguinte, como não consegui autorização para entrar na casa, liguei para o filho adotivo dele. “Estou fazendo um painel sobre o espiritismo no País e queria um depoimento seu sobre a obra de Chico.” Mentira. Ele, no entanto, topou receber-me à noite. Começamos a conversar e uma luz acendeu. “É meu pai. Deve estar precisando de mim. Espere um pouco.” Assim que ele saiu, a mão que eu segurava a caneta começou a esquentar violentamente. Queimava. Corri para o quintal em busca de uma torneira. Não achei. Fiquei balançando a mão, até que o filho de Chico surgiu na varanda e falou: “Parabéns, meu pai mandou dizer que seu livro será um sucesso.”

ISTOÉ – E o caso da Tia Lourinha…
Souto Maior –
Outro episódio curioso, que começou em setembro de 2003.
Tinha voltado de Brasília. O primeiro e àquela altura único livro, As vidas, passava dos 50 mil exemplares vendidos, algo que eu não concebia nem nos melhores sonhos. Me preparava para mergulhar num projeto diferente. Toca o telefone. Era um jovem que conheci em Brasília e que se dizia médium. “Você conheceu Tia Lourinha?” Disse que não. “Pergunte a sua família e me ligue.” Telefonei para o meu pai. “Não”, ele disse. “Tem certeza?”, insisti. “Tenho.” Liguei para a minha mãe. “Claro, filho, era a melhor amiga de sua tia-avó Maria. Não saía da casa da sua avó. Morreu de câncer. Você não deve se lembrar, era um bebê. Mas da Tia Maria você se lembra, não? Por quê?”

ISTOÉ – E aí?
Souto Maior –
Disse “te explico depois” e contei o resultado da pesquisa para o rapaz. Ele pede para que eu não revele o seu nome. Ele respondeu: “É que eu psicografei um recado dela para você. A mensagem: “Marcel, meu filho. Eis que do outro lado do rio da vida, volto contente por tudo que vos deu a divindade. Sua tia e seu avô pedem que você persevere na grande luta de divulgar a obra do apóstolo do espiritismo Chico Xavier. Confie em Deus e siga adiante. Porque foste chamado ao trabalho e agora não podes abandoná-lo. Um beijo da Tia Lourinha.”

ISTOÉ – Bom, o outro projeto tomou o rumo da gaveta…
Souto Maior –
E lá repousa até agora. Começava ali o Por trás do véu de Isis.

ISTOÉ – Depois de tudo isso, ainda dá para se manter cético?
Souto Maior –
Brinco dizendo que nasci com esse defeito de fabricação de jornalista, que é a desconfiança. Entro nas coisas desconfiando e, muitas vezes, saio do mesmo jeito, sem acreditar em nada. Existe uma frase maravilhosa de Kardec que se encaixa no jornalismo com precisão espantosa: “É melhor rejeitar dez verdades do que aceitar uma mentira.” Apenas continuo fiel a Kardec (risos). Mas aprendi muitas coisas com Chico. Ele costumava, por exemplo, questionar os que, como eu, condenavam o assistencialismo de suas campanhas de caridade. “Quando uma casa está em chamas, a gente cruza os braços e espera os bombeiros ou parte em busca de baldes em mangueiras?” Adaptei outra de suas frases para concluir o Por trás do véu de Isis: “Fora da caridade e da solidariedade não há salvação.” Independentemente das crenças, acho que melhorei um pouquinho.