O escritor português Dinis Machado é, antes  de tudo, um autor de palavra. Em 1977, quando escreveu O que diz Molero (José Olympio  Editora, 206 págs., R$ 24), ele anunciou ao  público que seria o seu primeiro e último romance, posto que tudo o que tinha a dizer estava ali condensado. Levada aos palcos por Aderbal Freire-Filho, a obra é um resumo de tudo que o autor, jornalista e editor de histórias em quadrinhos fez durante sete décadas de uma vida altamente produtiva. Basicamente, o livro trata do misterioso encontro de dois personagens, Austin e Mister DeLuxe, burocratas ligados a uma misteriosa organização. Eles lêem e comentam um relatório, elaborado por um certo investigador Molero, sobre um cidadão anônimo e identificado apenas como “o rapaz” ao longo de uma trama que frequentemente beira o absurdo.

À medida que os comentários ao relatório de Molero avançam, Austin e DeLuxe vão tecendo ilações com as lembranças de suas próprias vidas na Lisboa  da década de 1940. Personagens das vidinhas modorrentas da infância de um Portugal altamente reprimido vão saltando da memória dos dois burocratas e dando corpo ao que nenhum conteúdo teria por si só. O resultado remete aos diálogos obscuros de Esperando Godot, de Samuel Beckett, à estética dos quadrinhos do garoto Spirou, dos quais, não por coincidência, Machado foi editor, e à trilha sonora do mais puro fado.