A 1ª Exposição de Arte Moderna de Belo Horizonte causou tanto impacto que, em 11 de junho de 1944, oito telas apareceram giletadas. Com a conservadora sociedade local dividida entre os adeptos e os críticos à irreverência modernista, o ato de intolerância acabou creditado genericamente aos mineiros. Sessenta anos depois, a pesquisadora Monique Bouffis, filha da pintora alemã Martha Loutsch, revela a autoria do atentado. “Enquanto viveu, minha mãe sempre lembrava que o ataque fora desfechado pelo filho do escritor francês Georges Bernanos”, afirma Monique. “Martha presenciou a fúria dele em relação ao Oswald de Andrade”, completa, referindo-se ao escritor que integrou a caravana de intelectuais paulistas convidados a participar da mostra por Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte. O filho de Bernanos teria se exaltado com Oswald de Andrade, que, durante uma conferência, acusara seu pai, autor de Sob o sol de Satã, de ser simpatizante do fascismo e de escapar do alistamento na Segunda Guerra Mundial, refugiando-se em Minas Gerais. Chamava-o de Joana D’Arc.

No dia seguinte à conferência, as telas apareceram rasgadas. Uma delas, Mendigos, de Tomás Santa Rosa, ainda conserva marcas da agressão. Ela está entre as 80 obras exibidas na remontagem da exposição de 1944, que acontece até o dia 10 de dezembro no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Batizada de O olhar modernista de JK, a mostra apresenta trabalhos dos mesmos 46 artistas plásticos da exposição original, que abrigou 134 obras. Junto com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e o Salão Modernista de 1931, no Rio de Janeiro, a exposição mineira consolidou o movimento no Brasil. Em Belo Horizonte, coincidiu com um período efervescente, no qual JK abria avenidas, levantava edifícios e construía o conjunto arquitetônico da Pampulha – o primeiro grande projeto de Oscar Niemeyer, que originalmente incluía uma capela e um cassino.

Para completar a ousadia, o futuro presidente do Brasil decidiu também promover um amplo debate sobre arte moderna, levando para a capital mineira artistas e intelectuais de primeiríssimo escalão. Entre eles estavam os críticos Décio de Almeida Prado e Sérgio Milliet; os escritores Jorge Amado, José Lins do Rego e Oswald de Andrade; o historiador Caio Prado Junior; o jornalista Samuel Weiner; e os artistas Anita Malfatti, Alfredo Volpi, Carlos Poty, Carlos Scliar, Djanira, Hilde Weber, Rebolo Gonzales e Santa Rosa. O pintor Emiliano Di Cavalcanti chegou atrasado. Mesmo assim, ainda fez a palestra Mitos do modernismo. Entre os expositores, a única que morava em Minas, radicada na cidade de Sabará, era Martha Loutch, que tem sala especial na remontagem. Uma das obras de Martha, Cacho de bananas, que retratava as frutas em roxo, também foi danificada em 1944. Outra que causou polêmica, mas saiu incólume, foi O galo, de Cândido Portinari. À época, logo na entrada da mostra, um dos organizadores, o pintor Alberto Guignard, dependurou um retrato de JK, com um aviso: “Inacabado.” Devidamente concluída, a tela está agora no Palácio do Itamaraty.

Nos anos 40, o encontro entre personalidades tão exuberantes foi explosivo, em especial durante os debates, na Biblioteca Municipal. Além dos artistas, na platéia havia críticos para todos os gostos. “Quando Sérgio Milliet iniciou a série de conferências falando de pintura, o salão da Biblioteca Municipal tinha relativamente mais gente do que o estádio do Pacaembu nos grandes jogos”, registrou Oswald de Andrade. “Sem questões com árbitro nem resultados duvidosos, havia uma invasão de campo que apinhava curiosos e debatentes de flanco, atrás e quase por cima do conferencista.” Diante das controvérsias, JK foi sensato. “Na rua, não garanto, mas no interior da biblioteca a palavra é livre”, afirmou, segundo relato do jornalista Cláudio Bojunga, na biografia JK – o artista do impossível.

A idéia de remontar a ruidosa mostra foi da curadora Denise Mattar, durante uma cerimônia no Memorial JK, em Brasília. “Acho que foi o Juscelino que assoprou no meu ouvido”, disse. “Afinal, Brasília nasceu em Belo Horizonte.” Idealizada para rememorar o processo que culminou com a construção de vanguarda no Planalto Central, a exposição exibe também núcleos sobre JK e até figurinos de época. Promovida pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), O olhar modernista de JK pretende trazer de volta a atmosfera dos anos 40. Dispensa, porém, giletes iconoclastas.

Anos JK: o clima de entusiasmo e otimismo que Juscelino imprimiu a seu governo, quando chegou à Presidência da República, em 1956, está representado em um dos quatro núcleos da exposição

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