Ele morreu jovem, devia ter no máximo 18 anos. Forte, ágil e musculoso, tinha traços suaves, quase andróginos. Esse brasileiro pré-histórico, a quem chamaremos de “Luizão”, viveu há 8.500 anos. Fazia parte da primeira família humana a povoar o Brasil Central, 11.500 anos atrás. Seu povo morava em abrigos rochosos que existem às centenas na bacia do rio das Velhas, em Minas Gerais. Eles viviam entre matas e cerrados nos últimos milênios da Era do Gelo, e enfrentavam um clima bem mais seco e frio do que o atual. Ninguém sabe como “Luizão” morreu. Pode ter sido de doença, acidente, numa luta contra tribos inimigas, ou vítima das longas presas curvas de um tigre dentes-de-sabre. A vida desses pioneiros era um risco constante, poucos ultrapassavam os 30 anos. O jovem caçador não teve essa sorte. Quando morreu, seus ossos descansaram ao lado das paredes rochosas e, com o passar dos anos, ficaram esquecidos.

O clima se alterou drasticamente. Os lagos secaram, as florestas sumiram, mastodontes, preguiças, ursos, lhamas e tatus gigantes desapareceram do planeta, e até o povo de Lagoa Santa, como ficou conhecido por 160 anos de pesquisas arqueológicas, desapareceu quase por completo.

A história do brasileiro pré-histórico, a quem os cientistas chamam de “HW-04”, enfim começa a ser recontada. Tudo começou na década de 1930, quando o cônsul britânico Harold Walter, arqueólogo nas horas vagas, decidiu escavar cavernas de Lagoa Santa, vilarejo em Minas Gerais que ficou famoso em 1844, quando o naturalista dinamarquês Peter Lund revelou ao mundo os esqueletos e milhares de fósseis de uma incrível fauna extinta. Durante duas décadas, o cônsul britânico reuniu uma coleção com dezenas de esqueletos humanos, entre eles o crânio de “Luizão”. Seus restos ficaram guardados no Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

As coisas começaram a mudar em 1998, quando o antropólogo mineiro Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos da Universidade de São Paulo (USP), analisou e mediu a coleção de 81 crânios. Sua intenção era reunir evidências para provar a tese de que os primeiros habitantes de Minas Gerais tinham traços negróides, bem diferentes dos índios atuais, e muito parecidos com os dos aborígines australianos e dos africanos de hoje. Entre os diversos crânios, ele selecionou um em excelentes condições. Fez uma réplica em resina e enviou a Manchester, na Inglaterra, para o médico forense Richard Neave, um artista mundialmente conhecido por seu trabalho de reconstituição facial.

Papa da anatomia artística, nos moldes do italiano Leonardo Da Vinci, Neave dedicou 40 de seus 67 anos à Universidade de Manchester, onde se notabilizou em recriar a face de mortos para ajudar a decifrar crimes insolúveis. Em seu currículo ele tem feitos memoráveis, como faces de múmias egípcias, homens de Neanderthal, o lendário rei Midas (aquele que transformava em ouro tudo o que tocava), e Felipe II da Macedônia, o pai de Alexandre, o Grande. Seu trabalho mais conhecido foi o rosto de Jesus Cristo que, com a ajuda de arqueólogos israelenses, ele reconstruiu para um documentário da rede de tevê britânica BBC, em 2002. O trabalho, polêmico, resultou em um messias de pele morena, cabelos escuros e encaracolados. Bem diferente das imagens que se popularizaram nos museus.

Donos da terra – Em 1998, a pedido da mesma BBC, Richard Neave reconstituiu o crânio da primeira brasileira, apelidada de Luzia, numa alusão a Lucy, a ancestral humana mais famosa, desenterrada na África em 1974. Ao contrário de Lucy, da espécie Australopithecus afarensis e datada em 3,5 milhões de anos, Luzia era bem humana. Viveu entre 11 mil e 11.500 anos atrás e não tinha olhos amendoados como os índios das Américas, descendentes de caçadores siberianos que cruzaram o estreito de Bering entre a Ásia e o Alasca há 11 mil anos. Luzia tinha feições e o formato do crânio semelhantes aos aborígenes australianos e africanos, mas não se pode dizer que sua pele fosse negra.

O inglês Neave se surpreendeu com o estudo dos crânios de Lagoa Santa. Por isso, aceitou fazer de graça o molde do rosto de “Luizão”, junto da assistente Denise Smith. Seu trabalho consumiu um ano e pode representar uma pá de cal na teoria da ocupação do continente americano. “Essa tese se apóia em dados estatísticos e em evidências científicas e pode colocar de cabeça para baixo todo o pensamento convencional”, diz. A repercussão política promete ser grande e envolve a discussão sobre os verdadeiros donos da terra que aqui viviam antes da chegada dos colonizadores europeus. “Essa nova teoria brasileira é fascinante, provocativa e tem um poder explosivo incrível”, afirma Neave.

O arqueólogo Walter Neves sabe das implicações de seu trabalho. Desde que apresentou o crânio de Luzia, ele recebeu uma enxurrada de críticas. As mais ferozes, dos americanos, que consideraram leviana sua proposta sobre a epopéia humana a partir de um único crânio de feições negróides. Por isso, a reconstituição de Richard Neave é um divisor de águas. Em especial porque mostra aos leigos o que poucos cientistas brasileiros duvidam: que antes dos índios já havia outra população em território brasileiro. “Vamos provar que Luzia não estava só”, diz o pesquisador brasileiro.

O retrato do caçador de Lagoa Santa ficou pronto na semana passada. Tanto de frente como de perfil, ele parece muito mais real que Luzia. A beleza dos traços de “Luizão” é tamanha que joga para segundo plano o fato de haver poucas informações sobre ele. A precariedade dos registros de Harold Walter está no fato de as escavações terem sido realizadas antes de 1950, quando foi inventada a datação pelo método carbono-14.

Mama África – A reconstituição facial de “Luizão” serve como uma luva para evidenciar a teoria do povoamento do Novo Mundo formulada em 1989 por Walter Neves e pelo argentino Héctor Pucciarelli. Ao tomar as medidas de diversos crânios sul-americanos com mais de 8 mil anos, eles constataram que não podiam pertencer a índios descendentes de asiáticos, mas de negróides. Daí para lançar a idéia de que os primeiros humanos modernos a adentrar o continente americano teriam traços de africanos e de aborígines australianos foi um pulo.

Sabe-se que nossa espécie, o Homo sapiens, evoluiu na África e de lá saiu para povoar todos os continentes. A segunda leva migratória dos humanos modernos teria bordejado a costa do oceano Índico e cruzado o Sudeste Asiático até desembocar na Indonésia e na Austrália, há pelo menos 40 mil anos. Os aborígines australianos e da Nova Guiné, ambos negros retintos, são ancestrais diretos desses pioneiros. Para Neves e Pucciarelli, a onda migratória não parou por aí. Se alguns grupos humanos que estavam na Ásia resolveram tomar a rota Sul, em direção à Oceania, outros preferiram bordejar o Pacífico, na direção Norte-Nordeste, passando ao largo da Sibéria para atravessar o estreito de Bering e invadir o Alasca – milhares de anos antes de o primeiro siberiano com traços mongolóides refazer a rota.

Como todos os índios americanos têm traços mongolóides, resta a dúvida de qual fim levaram os primeiros povos aborígines do Novo Mundo. Há três possibilidades. Eles podem ter morrido sem deixar descendentes, vitimados pelas flutuações climáticas. De acordo com Walter Neves, que coordena desde 2000 um projeto nas grutas de Lagoa Santa com patrocínio da Fapesp, o povo de Luzia e de “Luizão” habitou o vale do rio das Velhas num período em que o clima era mais úmido e agradável. A partir de 7.500 anos atrás, no entanto, o ressecamento causou um abandono quase completo do local. Isso explicaria o fato de a região ter experimentado um esvaziamento populacional, apenas revertido a partir de 4 mil anos atrás, quando o clima assumiu suas condições atuais.

Outra explicação para o desaparecimento dos homens de Lagoa Santa é terem sido mortos pelos mongolóides recém-chegados, que já dispunham de arco e flecha. Há uma terceira hipótese, a de uma nova migração de siberianos dotados de tecnologia superior. É um maremoto populacional com potencial para submergir as antigas tribos negróides num mar mongolóide, assim como uma gota de nanquim é incapaz de tingir um litro de leite. Não por acaso, há anos os geneticistas estudam o sangue das diversas etnias ameríndias à procura destes genes aborígines, ainda sem sucesso.

Neves não restringiu suas análises à Lagoa Santa. Com seus colegas, mediu os crânios antigos em várias partes das Américas. As melhores notícias vêm do México, onde analisaram cinco crânios de cerca de 10 mil anos. Todos são diferentes dos índios atuais e semelhantes aos humanos de Lagoa Santa. Em 2001, Rolando González-José já havia medido os crânios de uma tribo desaparecida há 500 anos na Baja Califórnia, projeção de terra que descola da América Central para se projetar sobre o Pacífico. Por ser geograficamente isolada, uma pela maré mongolóide que tomou de assalto as Américas, sem, no entanto, sobreviver às epidemias que infestaram o Novo Mundo com a chegada de Cristóvão Colombo.

No Brasil, a equipe da USP encontrou provas de que o povo de traços negróides não estava restrito apenas ao Brasil Central. A novidade vem do sambaqui de Capelinha, no vale do Ribeira de Iguape, em São Paulo, uma montanha de conchas e crustáceos sobre a qual os índios viviam e enterravam seus mortos. O estudo de um esqueleto de 8.900 anos desenterrado em Capelinha revelou traços cranianos semelhantes aos do povo de Lagoa Santa.

A última e mais impressionante descoberta dos pesquisadores brasileiros vem de uma preguiça terrestre. Quando viva, ela procurou abrigo na gruta Cuvieri, em Matosinhos, onde caiu num abismo de quase 20 metros, para ser reencontrada e retirada do local 17.470 anos depois – a datação é estimada pela empresa Beta Analytic, de Miami. A idade da preguiça não surpreende, já que a espécie sobreviveu até pelo menos 9 mil anos atrás. Quando se sabe que abaixo dela havia três dentes humanos, a coisa muda de figura. A datação, se confirmada, revolucionará tudo o que se sabe sobre o povoamento do continente. As evidências mais antigas de ocupação do Novo Mundo são do sítio Monte Verde, no Sul do Chile, com 12.500 anos. O posicionamento da preguiça acima de restos humanos implica que o animal morreu depois, e que o cadáver humano tem mais de 17.470 anos, o que recuaria em 4 mil anos a ocupação das Américas. O esqueleto ainda está no fundo do abismo. Em julho, os pesquisadores pretendem desenterrá-lo. Com sorte, essa seria a prova cabal de que a história da América foi bem diferente do que contam os cientistas americanos.