Em política internacional, um falcão não é necessariamente uma ave de rapina, como no reino animal. Mais do que um “linha-dura”, ele é um bípede preocupado em não demonstrar fraqueza diante do(s) adversário(s). Esse tipo de liderança acredita que, na arena internacional, o que conta é o poder, ou a capacidade de usá-lo para dissuadir o inimigo. Chamados também de “realistas”, eles acham que o equilíbrio de
poder entre as nações contribui mais para a estabilidade mundial do que concessões bem intencionadas ou proselitismo moral. O ex-premiê britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, por exemplo, seria um falcão deste tipo.

Mas esta é uma linhagem nobre de falcões, próxima da extinção. Existe outra, mais ordinária e ignóbil, que faz jus à fama de predadora. Seu maior expoente  atual, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, acaba de ser reeleito e, desde então, vem dando mostras de que, no segundo mandato, pretende exercer plenamente seus direitos de caçador. O primeiro indício foi a saída  do general Colin Powell, o único pombo aninhado em um gabinete de belicosos falcões, que renunciou à Secretaria de Estado e foi substituído pela assessora de Segurança Nacional, Condoleezza Rice. Ao contrário de Powell, “Condi” deverá grasnar no mesmo diapasão do vice-presidente, Dick Cheney, e do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, os maiores representantes dessa espécie rapace na Casa Branca.

Os países da América do Sul, afastados das áreas de interesse dos Estados Unidos nos últimos anos, devem se preparar para tempos bicudos. Particularmente o Brasil, que no governo Lula vem mantendo uma postura diplomática mais independente de Washington, seja nas negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), seja em temas como os subsídios agrícolas, a luta contra o terrorismo ou o Iraque, além de buscar parcerias diferentes, como com a África do Sul e a Índia. A relativa condescendência de Powell, que fazia o tipo “americano simpático” diante de divergências com Brasília, deve dar lugar a uma postura mais dura de Condoleezza. “O tema da não-proliferação nuclear, por exemplo, deve ganhar espaço e o projeto da planta de reprocessamento de urânio de Resende pode receber maior atenção em Washington”, disse Peter Hakim, presidente do Diálogo Interamericano.

Mas, enquanto dona Rice não vem, os velhos falcões de sempre continuam cravando suas garras abaixo do Rio Grande. Na terça-feira 16, na abertura da VI Conferência de Ministros da Defesa das Américas em Quito (Equador), Donald Rumsfeld não fez por menos e voltou a defender a tese de que, para reagir à ameaça do terrorismo, do narcotráfico e do crime organizado, as Forças Armadas latino-americanas devem se reestruturar completamente, assumindo funções tipicamente policiais. Trata-se de uma proposta antiga, reelaborada pelo Conselho das Américas, uma caixa de ressonância dos interesses das grandes corporações americanas que investem na América Latina. Em função de estudos do Banco Mundial sobre o impacto negativo da criminalidade e da corrupção crescentes na região sobre os negócios, a entidade recomenda a reestruturação da Junta Interamericana de Defesa (JID) – criada em 1942 para combater o nazi-fascismo e depois incorporada à estrutura da Organização dos Estados Americanos (OEA) – para transformá-la numa agência hemisférica de coordenação da luta contra o crime organizado transnacional e o terrorismo. A proposta de Rumsfeld foi passada para o ministro da Defesa do Brasil, o vice-presidente José Alencar, que iniciava seu batismo de fogo na arena internacional.

Multilateralismo – Mas o bonachão Alencar chegou preparado à liça, falando grosso. Para começar, ele bateu logo no discurso de Rumsfeld e rechaçou a proposta americana de transformar a JID em uma superagência policialesca. “O Brasil julga contraproducente que se crie mais uma instância que iria duplicar os esforços ou levar os Estados membros da OEA a deliberar sobre os mesmos assuntos em dois foros distintos.” Lembrando que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha defendido na ONU o multilateralismo como base de uma ordem internacional “capaz de promover a paz e o desenvolvimento sustentável das nações”, o dublê de vice-presidente e ministro da Defesa criticou diretamente os que “privilegiam o uso da força para combater as chamadas novas ameaças representadas pelo terrorismo internacional e pela proliferação das armas de destruição em massa”, isto é, Tio Sam.

Para Alencar, o Brasil e muitos outros países, ao contrário do que preconizam os americanos da linha Bush, defendem a cooperação para combater ameaças estruturais, refletidas na pobreza extrema, fome e aumento da desigualdade. O vice-presidente afirmou que “um mundo onde a fome e a pobreza prevalecem não pode ser um mundo pacífico”. Referindo-se diretamente à idéia americana de reestruturar o papel das Forças Armadas, Alencar garantiu que, tanto para o Brasil quanto para seus parceiros sul-americanos, “a atividade-fim das Forças Armadas é a defesa da soberania e da integridade territorial”. E lembrou que o Brasil acha que, em vez da idéia americana de transformar os militares em policiais de luxo, “compete às forças policiais e órgãos de inteligência de cada país trabalhar para prevenir e combater o terrorismo e o crime organizado transnacional, com base na cooperação e no intercâmbio de dados de inteligência”. O discurso de Alencar, que representa uma posição consolidada do governo brasileiro, teve o apoio explícito das delegações da Argentina e do Chile, secundados por Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Venezuela e México. As posições americanas, rechaçadas na cúpula, tiveram o apoio do Canadá, da Colômbia e do Equador.

Apoio parlamentar – Na verdade, a defesa intransigente feita por José Alencar do papel das Forças Armadas no Brasil e no continente reflete uma posição muito bem pensada do Ministério da Defesa, com apoio de importantes setores parlamentares. “Não é possível imaginar as Forças Armadas reprimindo cidadãos brasileiros, mesmo que estejam cometendo ilegalidades. Seria uma atitude inconstitucional e retrógrada, que remete ao conceito de Segurança Nacional da ditadura militar”, ataca o deputado Paulo Delgado (PT-MG), um dos principais especialistas em assuntos de Defesa e Forças Armadas do Congresso. Para Delgado, crimes e ilegalidades são assuntos para a polícia e não para os militares. Ele considerou a posição brasileira, apresentada por José Alencar em Quito, como “firme e claramente definidora de nossas prioridades”. O deputado mineiro acha que as pressões americanas refletem as preocupações com a própria indústria de armamentos do país. “Para ser lucrativo, o mercado tem que estar concentrado, sem outros fornecedores. Como são o único país com recursos econômicos e tecnológicos para dominar toda a cadeia produtiva de armamentos, os EUA tentam impedir que outros se juntem e criem suas próprias opções”, comenta. O deputado defende a criação da Organização do Tratado do Atlântico Sul (Otas), uma releitura modernizada de um antigo projeto dos militares. Agora, o conceito envolve uma integração entre Brasil, seus parceiros de Mercosul e a África do Sul. Além de uma integração militar, Delgado é a favor de um trabalho conjunto desses países na produção de seus próprios armamentos.

Presença naval – A idéia do deputado será bem-vinda às cabeças pensantes da Defesa e do Itamaraty. Por trás dos ambiciosos acordos comerciais, econômicos e políticos entre Brasil (Mercosul), África do Sul e Índia – o chamado G-3 – há um enorme potencial de cooperação e defesa militar. De maneira discreta, os Estados-Maiores desses países imaginam uma maneira de ter o controle, ou ao menos exercer o poder dissuasório naval na passagem do Pacífico para o Atlântico (Cabo Horn e o Estreito de Drake, que separa a América do Sul da Antártica) e na histórica passagem do Atlântico para o Índico, o Cabo da Boa Esperança. Quem puder mostrar uma presença naval sólida nessas duas encruzilhadas do mundo terá poder. Considerando que a Índia tem a terceira maior Marinha do mundo, que a África do Sul é muito bem equipada militarmente, inclusive com mísseis de projeto próprio, que Brasil e Chile possuem poucos mas excelentes submarinos, com tecnologia de ponta, e que o porta-aviões São Paulo é extremamente capacitado para combate, fica formada uma equação suficiente para, senão preocupar, pelo menos incomodar os falcões de Washington.