Um Lula entre quatro paredes: brincalhão,  que fala palavrões e emite opiniões políticas picantes. Reservado na sua vida pessoal, Lula abriu a intimidade de sua campanha presidencial, em 2002, para o cineasta João Moreira Salles. O ato de Lula valeu a pena. Fruto de 30 dias de filmagens, feitas pelo fotógrafo Walter Carvalho, o documentário Entreatos mostra cenas de Lula nos camarins, nas salas de gravação dos programas, nos jatinhos, em casa, no barbeiro. As fitas de vídeo digital foram trancafiadas em um cofre, no mosteiro de Frei Betto (amigo e assessor de Lula). Na pré-estréia, na terça-feira 16, em São Paulo, Lula e seu lado ator fez a platéia rir e aplaudir. João Salles – que dirigiu com brilhantismo o documentário Nelson Freire, sobre o pianista brasileiro de fama internacional – repetiu a dose. Entreatos é lançado junto com outro documentário, de Eduardo Coutinho. Filmado também em 2002, Peões conta a história pessoal dos anônimos das greves do ABC e explica o nascimento do Lula de Entreatos: ambos formam um retrato antropológico dos operários, com seus sonhos e sua cultura, pelas bocas dos próprios e do mais famoso de todos.
A seguir, a entrevista que os dois cineastas deram a ISTOÉ, com alguns dos trechos (destacados em negrito) mais instigantes do filme, que, antes mesmo da estréia, no dia 26, já causa impacto na sensível arena política. Coutinho viu-se obrigado a tirar um depoimento de seu filme – uma personagem que fala que Lula bebia demais nos tempos do ABC. “Foi para protegê-la. Não por causa de Lula. Ele mesmo fala sobre bebida no filme do João”, explicou Coutinho. O candidato lembra que, ao sair da fábrica, costumava tomar “uns gorós” e jogar futebol. O preconceito de classe ainda se revela firme e forte no Brasil. Afinal, como bem lembra João Salles: ninguém diz nada quando um empresário tomo uns uísques e depois vai jogar golfe. Já o peão…

ISTOÉ – Lula sempre se recusou a mostrar sua intimidade. Como conseguiu  filmá-lo à vontade no bastidor da campanha?
João Moreira Salles –
Preservar sua intimidade é uma das qualidades do Lula. Numa cultura política degradada, em que políticos usam sua família e sua religião, Lula não faz isso. Não é um filme sobre a intimidade do Lula, e sim sobre a sua intimidade política. Lula atua para a câmera, como qualquer personagem de documentário e fala sobre política. Já nas cenas da vida familiar percebi que o personagem não estava à vontade. E ele estava certo: o espaço privado não deve ser violado.

(Na cena em que é entrevistado por jornalistas estrangeiros, Lula os faz rir ao responder sobre o que teria aprendido em Cuba, que gostaria de aplicar no  Brasil: “Nós também estamos querendo saber.”)

ISTOÉ – Lula já viu o filme? Gostou?
João –
Não sei. Entreguei a fita há um mês para o Gilberto Carvalho (chefe de Gabinete da Presidência). Ninguém me ligou para dizer que gostou ou para pedir para tirar isso ou aquilo. Acho até que Lula não vai gostar. Fiz uma opção nesse filme: não usei o material público. Tirei uma coisa fundamental da personalidade política de Lula, que é o político que fala diante de 100 mil pessoas. Esse lado épico não tem no filme. Isso as pessoas já conheciam através de imagens da tevê. Tenho a impressão de que quando o Lula aceitou fazer o filme ele queria o registro da sua extraordinária capacidade de mobilizar multidões – o que é compreensível. Fiz um filme sobre uma campanha épica em que não há o épico.

ISTOÉ – As cenas dos bastidores – com Lula e seus assessores fazendo comentários privados – podem ter um efeito constrangedor hoje?
Eduardo Coutinho –
A gente fez questão de lançar os dois filmes depois do segundo turno das eleições municipais deste ano. Acho que as pessoas que não gostam do Lula vão continuar  não gostando. E as que gostam vão continuar gostando.

(No avião, Lula diz para José Alencar sobre a possibilidade de morar no Palácio da Alvorada: “Aquele Palácio é triste porque Fernando Henrique nunca jogou uma bola, não dança.” Alencar emenda: “Nunca toma uns goles.” Entre Marisa e Duda Mendonça, Lula diz que tem a frustração de não saber batucar com as mãos na mesa. Duda mostra que sabe e diz: “Em marketing político posso ser uma merda, mas em batuque e briga de galo eu sou bom.” Lula responde: “Mas quem briga é o galo.”)

ISTOÉ – Qual a impressão sobre Lula no convívio diário das filmagens?
João –
É o que está no filme. Nem sequer sei se o Lula que está ali é o seu Lula, é o Lula do Lula, o Lula da dona Marisa, o meu Lula. O interessante é o fato de Lula ser carne, osso, sangue, ambíguo, complexo, paradoxal, tudo ao mesmo tempo. O saldo da minha impressão foi positivo. Para começar, ele me deixou fazer o filme. Que outro político permitiria esse acesso aos bastidores a alguém que ele não conhecia antes? A alguém que não tem filiação ideológica e social semelhantes à dele – porque eu venho de um mundo que é o oposto absoluto da origem social do Lula. Ele não interferiu em nenhum momento no filme.

ISTOÉ – No filme, José Dirceu parece querer parar as filmagens. Foi o momento mais tenso?
João –
Foi no último dia, quando vimos que não estaríamos diante de Lula na hora do resultado da eleição. Seria terrível. A única coisa que vale nesse tipo de documentário é o acontecimento em tempo real. Na cena do Zé Dirceu é a hora em que ele toma conhecimento do filme, durante a preparação para um debate. Ele teve uma reação natural.

(Dirceu: “Está gravando isso? De quem é esse pessoal? Que João Salles?” Gilberto Carvalho: “É de confiança, as fitas são guardadas no cofre.” Dirceu: “Vai nessa… Se você soubesse o que eu tenho de outras campanhas não falava isso.”)

ISTOÉ – Foi gravado um total de 240 horas. Há algo revelador no que não
está no filme?
João –
Nem todas as imagens podem ser vistas agora. Só daqui a uns 40 anos. Não revelariam nada de extraordinário, mas são imagens que poderiam ser usadas pelos adversários ou por ele próprio. Eu não quero que o bruto do filme sirva para nenhum tipo de instrumentalização.

ISTOÉ – No filme Peões, Lula aparece como líder sindicalista, diferente do
Lula de Entreatos. O piadista de 2002 surpreendeu?
João –
Não, sempre soube que ele era assim. Não acho que o Lulinha Paz e Amor foi uma construção. Lula estava muito à vontade. Uma qualidade dele é não guardar ressentimentos. Gosto de como ele conta, rindo, a difícil rotina de operário. Não há raiva. Ele não chegou ao poder para se vingar.

(Lula conta que numa reunião do PT um xiita diz que gostaria de vê-lo de macacão. “Eu disse que daria meu macacão para ele e ele o seu paletó e gravata para mim. Só fala isso quem não conhece. Vai trabalhar numa fábrica para ver se é bom… Na hora do almoço, a gente tomava três goles de pinga, comia em 15 minutos e ía jogar bola. O macacão ficava melequento. Não tenho um milímetro de saudade da fábrica. Tenho saudade dos meus amigos.” Suas piadas perpassam o filme todo, como na cena em que Lula brinca no telefone: “Companheiro Bush? Tudo bem?” Em seguida, diante do argentino Luís Favre, marido da prefeita Marta Suplicy, Lula, em portunhol, finge que telefona para o ex-presidente da Argentina Eduardo Duhalde: “Hola, Duhalde. Quieres Favre de vuelta? Yo mandaré.”)

ISTOÉ – Vocês viram um pouco do Lula naqueles personagens e um pouco daqueles personagens no Lula?
João –
Existe no meu filme e no do Eduardo a possibilidade de produzir uma antropologia do operário brasileiro. Lula faz no filme uma discussão preciosa do que são os sonhos e a cultura dos operários. Isso é extraordinário: querer usar terno e gravata é uma aspiração do operário, sim. É o direito de ascender. Há pessoas que vêem a sequência do Lula no filme falando no terno e na gravata e descrevem aquilo como o Lula se aburguesando. É desalentador. É não entender nada. É uma pena. Coutinho – Isso mesmo. Mas não quer dizer que pelo fato de o presidente ter sido peão não possa ser criticado. Antes de ir para o ABC, eu julgava que encontraria pessoas dizendo, com ressentimento: “Agora ele toma uísque, fica em ar refrigerado.” Não encontrei. Um cara chamado Bitu diz: “Lula deve andar bem-vestido, faz parte.”

(Com seu barbeiro, Lula mostra sua vaidade: “Se minha mãe me visse, falava: ‘Eta baianinho jeitoso.’” Quando a figurinista Nazareth, ao lado de Marisa, elogia os nós que Lula dá em suas gravatas, ele comenta: “O nó do Serra estava horrível” (no debate de tevê). E revela: “Sempre gostei de andar arrumado. É que peão não pode comprar muitas roupas, né? Passei 30 anos na fábrica e não me acostumei com o macacão. Mas três dias de gravata…” Sobre a emoção ao comprar o TL azul-turquesa, quando era metalúrgico, Lula conta, rindo: “Entrei no carro, ele pegou na hora. Banco reclinado. Me senti um rei. Depois eu só progredi na vida.”)

ISTOÉ – O que vocês acham do governo Lula?
Coutinho –
Votei no Lula e votaria de novo. Não tinha expectativas porque sou pessimista e acho o Brasil difícil. Eu esperava mais atos simbólicos. Mas é difícil mudar, governar.
João –
O saldo sempre será positivo no governo Lula pelo fato de alguém como ele ter chegado à Presidência. Eu não tinha sonhos de ruptura. Me decepciona a idéia de que só há uma maneira de fazer as coisas, na economia. Teve derrotas simbólicas, como a do Fome Zero. Mas há virtudes também. O jogo está no meio. A partida vai terminar sem glória, nem apocalipse.

(Sobre a possibilidade de vitória, Lula comenta: “Vai ser muita responsabilidade. A partir de segunda-feira vão me cobrar tudo o que eu tenho falado… O meu medo é que a máquina conquiste a gente, ficar preso a uma agenda institucional… Os pais não conseguem cumprir todas as suas promessas a seus filhos e nem por isso deixam de ser bons pais”).