Com o humor típico de um show man, o ator Paulo Betti roubou a cena no Festival de Cinema de Gramado, há duas semanas, no Sul do País. Apresentador oficial do evento, Betti defendeu calorosamente a adoção do portunhol entre os presentes. Cinco filmes latino-americanos concorriam ao Kikito e cerca de 20 cineastas de países vizinhos participavam da premiação.

A iniciativa de Betti tem explicação. Recentemente, ele conheceu o poeta “brasiguaio” – termo usado na região de fronteira entre Brasil e Paraguai para definir pessoas que nasceram por aqui, mas vivem no país vizinho – Douglas Diegues e teve seu primeiro contato com o portunhol selvagem, uma versão, digamos assim, mais turbinada do convencional. Nascido da miscelânia que se fala na região da tríplice fronteira, onde ruas brasileiras, paraguaias e argentinas se confundem, o portunhol selvagem é uma mistura de português, espanhol, guarani e, até mesmo, inglês. O termo é de autoria do próprio Diegues, em homenagem às selvas primitivas da região.

De alguns anos para cá, no entanto, esse emaranhado de idiomas tem deixado a marginalidade das cidadezinhas fronteiriças para se tornar um movimento literário latino-americano. Na Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, no mês passado, no Rio de Janeiro, o autor pernambucano radicado em São Paulo Xico Sá participou de uma mesa de discussão e debateu, boa parte do tempo, em portunhol selvagem. Além disso, a novidade tem lançado luz para o original. O portunhol foi a língua oficial da Flap – versão alternativa da Flip, no início do mês, em São Paulo. Além de brasileiros, escritores e poetas hermanos participavam do evento.

Os porta-vozes do movimento são poetas, escritores e artistas que estão presentes em quase todos os países da América Latina. A miscelânia de português e espanhol migrou da fala para a escrita no início da década de 90, através do livro Mar paraguayo, do paranaense Wilson Bueno. Mas somente de dois anos para cá o uso da língua ganhou força na literatura latino-americana. Diegues é o precursor e divulgador-mor do movimento. Em 2002, lançou seu primeiro livro, Dá gusto andar desnudo por estas selvas. Depois disso, escreveu outras cinco obras e inaugurou a editora YiYi Jambo, especializada em lançar e traduzir títulos em portunhol selvagem. “Fundamos um komitê para traduzir as obras completas de Manoel de Barros al portunhol selvagem, al espanhol y al guarani”, diz Diegues, no mais perfeito portunhol selvagem. “Escrever nessa língua é divertidíssimo. Virou idioma oficial de e-mails e conversas de bar”, diz Joca Terrón, escritor mato-grossense radicado em São Paulo.

i59215.jpg

No Brasil, Terrón foi o primeiro a aderir à onda. Seu conto Monaks atravessam el Apa, escrito em portunhol em 2003, virou livro em 2006. Sua segunda obra, Transportunhol borracho, foi lançada um ano depois. A vontade de se aventurar pelo portunhol selvagem surgiu depois de Terrón conhecer Diegues pessoalmente. Mas, além disso, o escritor cresceu familiarizado com um mix de idiomas. Nascido em Cuiabá, cresceu em Bela Vista, cidade na fronteira com o Paraguai e com a Bolívia. “Lá, todos eram trilíngües. Aprendi que, apesar da diferença da língua, somos muito parecidos”, diz Terrón. Depois dele, vieram outros brasileiros. Xico Sá tem dois títulos: Caballeros solitários rumo ao sol poente e La mujer és un gluebo da muerte. Ronaldo Bressane é autor de Cada vez que ella dice xis. E a blogueira Clarah Averbuck é o membro mais novo do grupo. Ela escreveu um texto, em portunhol, em Nossa Senhora da Pequena Morte, que será lançado em setembro. Incansável, o próximo passo de Diegues é levar o portunhol para o cinema. Para isso, conta com o apoio de Paulo Betti. “Estarei no filme como ator ou na função que Douglas mandar”, diz Betti. “Acho que temos que perder a verguenza de hablar espanhol.”

O portunhol selvagem, assim como o convencional, que escapa da boca de qualquer brasileiro sem formação em espanhol diante da necessidade, não possui regras gramaticais. “É uma língua freestyle”, diz Terrón. Segundo os escritores, o público não leva a sério, mas se diverte. “Há uma reação lúdica (dos leitores)”, diz Xico. “Todo bêbado, louco e criança adora hablar em portunhol selvagem. Eis o segredo do sucesso e da longevidade”, filosofa. Durante sua participação na Flap, o escritor chileno Héctor Hernández Montecinos disse acreditar que, dentro de dez anos, o portunhol será a língua oficial da América Latina. Seus hermanos discordam. “Deixa o oficialismo com os homens dos Itamaratis da vida”, minimiza Xico Sá.