Relatora da ONU para questões de moradia, a urbanista diz que o pacote habitacional de Lula não beneficiará os mais pobres

ALERTA Na opinião de Raquel, a crise econômica deixa uma lição: "Tratar a moradia como mercadoria, como ativo financeiro não dá certo"

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, 52 anos, professora da Universidade de São Paulo (USP), é referência mundial quando o assunto é habitação. Diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989 a 1992) na gestão de Luiza Erundina e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003 a 2007), ela foi convidada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em maio do ano passado, para ser relatora especial para o Direito à Moradia da instituição. No Brasil, não poupa críticas ao avaliar as escolhas do governo referentes ao déficit habitacional. "Os investimentos se concentraram na ampliação do crédito.

E 91% da população que compõe o déficit habitacional no Brasil ganha entre zero e três salários mínimos. Essas pessoas não têm renda suficiente para ter crédito", diz ela. Às vésperas do anúncio do pacote habitacional do governo Lula, que promete movimentar R$ 70 bilhões e construir um milhão de casas até 2010, a urbanista permanece cética. "No Brasil, um plano de ampliação do crédito imobiliário teria um agravante. Como não há política efetiva para o uso consciente do solo urbano, é bem possível que o crédito financie a construção de imensas e novas periferias", diz a urbanista, que é casada e mãe de duas filhas.

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"Na Califórnia (EUA) já existem "tent cities", as cidades de tendas onde quem não tem casa vive em cabanas improvisadas, sem água, esgoto e iluminação"

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"É preciso dar continuidade à transformação das favelas em bairros. Isso inclui não só infraestrutura, mas regularização administrativa também"

ISTOÉ – O pacote habitacional do governo Lula deve estabelecer como meta a construção de um milhão de casas até o final de 2010. Ele contempla as principais questões habitacionais brasileiras?
Raquel

Estou preocupada com o pacote. E o que me preocupa é a tendência, já demonstrada pelo governo, de focar toda a política habitacional na ampliação da concessão de crédito. Esse modelo vem mostrando fraqueza desde o estouro, nos Estados Unidos, da bolha de crédito subprime (empréstimos de alto risco que culminaram na atual crise econômica).

Fica a lição: tratar a moradia como mercadoria, como ativo financeiro não dá certo. No Brasil, um plano de ampliação pura e simples do crédito imobiliário teria um agravante. Como não há política efetiva para o uso consciente do solo urbano, é bem possível que se financie a construção de imensas e novas periferias em torno das grandes cidades.

ISTOÉ – Mas não podemos pensar em um modelo de urbanização como o americano, com subúrbios integrados às grandes cidades?
Raquel

O modelo do subúrbio integrado americano já era. Não é economicamente viável transportar milhões de pessoas de um lugar para outro todos os dias em tempos de alta no petróleo e controle da emissão de poluentes. E, mesmo que esse modelo ainda fosse viável, ele é bastante improvável, já que dificilmente haverá investimento proporcional à concessão de crédito em infraestrutura como linhas de trem e ônibus para levar trabalhadores dos centros urbanos para essa periferia e vice-versa.

Só crédito não resolve o problema da habitação. Os efeitos da ampliação desordenada do crédito imobiliário não são novos. Países como México e Chile, que puseram em prática programas semelhantes ao que está se desenhando por aqui, acabaram com imensas periferias, mas exclusivamente residenciais, sem escolas e hospitais ou integração com a cidade.

ISTOÉ – O relatório preparado pela sra. para a ONU diz que essa favelização já não é exclusividade de países pobres e emergentes, virou realidade em metrópoles de países ricos. O que explica esse fenômeno?
Raquel

Hoje a gente vive a precarização da situação da moradia em lugares onde esse problema não existia mais. Europa e Estados Unidos, por exemplo, que tiveram graves problemas habitacionais no século XIX, já tinham contornado a questão com políticas públicas previstas pelo Estado de Bem-Estar Social. Dentro desse modelo, o governo interveio para reduzir o déficit habitacional tanto com políticas de incentivo à compra da casa própria quanto com o subsídio dos aluguéis.

Mas a partir dos anos 80 essa política passou a ser questionada pelo neoliberalismo, que previa a redução do Estado em todas as esferas públicas, inclusive a habitacional. A habitação passou a ser vista como um problema de mercado que devia ser resolvido pelo mercado. Nesse sentido, o governo reduziu os investimentos típicos do Estado de Bem-Estar Social e focou seus esforços na ampliação das linhas de crédito para quem quisesse comprar uma casa. Esses esforços foram a extremos e resultaram, entre outras coisas, na criação de linhas de crédito como o subprime, nos EUA.

ISTOÉ – Os países desenvolvidos mais afetados por essa onda de favelização são os que deixaram a questão habitacional nas mãos do mercado?
Raquel


Os indicadores que chegam a nós são extremamente claros e nos mostram a absoluta falência desse modelo nesses países. Na Califórnia (EUA) já existem "tent cities", ou cidades de tendas onde quem não tem casa vive em cabanas improvisadas, sem água e esgoto encanados, iluminação e outros acessórios urbanos. Na Espanha e no Japão, a crença no mercado – e digo crença porque é uma fé mesmo, sem base científica – também complicou em muito a situação da moradia. A exceção é a Inglaterra, que desde a Segunda Guerra mantém uma política de habitação fortíssima que prevê o uso consciente do solo urbano.

ISTOÉ – Qual é o impacto social da favelização em um país rico?
Raquel

Ela joga luz sobre questões importantíssimas. Na Europa, os assentamentos precários estão intimamente ligados à questão do imigrante, que por si só já é bastante problemática. Vemos o aumento da xenofobia e a exclusão do imigrante do dia a dia do país cada vez com mais frequência. Como relatora da ONU, solicitei missões em países como os EUA e a França para examinar a favelização dos imigrantes mais de perto. A situação é uma bomba esperando para explodir. E terá impactos econômicos, diplomáticos, habitacionais e ambientais bastante complexos.

ISTOÉ – Quais são as diferenças entre as favelas nos países desenvolvidos e as brasileiras?
Raquel

A principal característica dos assentamentos precários é a ausência de infraestrutura – água, luz, esgoto, rede elétrica, iluminação pública, pavimentação, etc. Nesse sentido há algumas semelhanças entre a precariedade de lá e a daqui. Mas nos países desenvolvidos as favelas aparecem aqui e ali, residualmente. Raramente se permite que uma região fique abandonada por muito tempo.

Já aqui, é comum encontrar até neto dos primeiros moradores de uma favela vivendo em condições similares às que viviam seus avós. Temos assentamentos precários com até 50 anos de existência. A favela é elemento estrutural do processo de urbanização. Ou seja, desde sua concepção, o modelo de urbanização adotado não acolhe os pobres. Vou dar um exemplo. Na Inglaterra, desde a década de 50, todo novo empreendimento imobiliário deve destinar parte de seu terreno às moradias populares. Houve interesse, desde a aceleração do processo de urbanização, de incluir quem não tinha acesso à moradia.

No Brasil, não existe uma política de uso do solo urbano desenhada para acolher a habitação social. Aqui a política habitacional se limita ao crédito para a indústria da construção civil. Mas de que adianta esse crédito se ele só viabiliza a construção de casas de quinta categoria a 50 quilômetros da cidade? Estamos perpetuando a precariedade.

ISTOÉ – O que foi feito nos últimos anos para reverter essa situação?
Raquel

A partir dos anos 80, os moradores das favelas passaram a ter mais liberdade para exigir seus direitos. E, de olho no retorno político que as medidas de urbanização das favelas podiam dar, a máquina administrativa passou a investir em água, luz, esgoto e pavimentação para transformar as favelas em bairros. Mas até 2004 os investimentos eram sempre feitos de pouquinho em pouquinho, com contagotas. Foi só a partir de 2004, quase um ano depois da criação do Ministério das Cidades, que vimos um aumento importante no gasto público com habitação. Em 2007, o governo destinou R$ 10 bilhões para urbanizar favelas.

ISTOÉ – Foi suficiente?
Raquel

Não é nem questão de ser suficiente. O que acontece é que os investimentos do governo se concentraram na ampliação do crédito. E 91% da população que compõe o déficit habitacional no Brasil ganha entre zero e três salários mínimos, não tem renda suficiente para ter crédito. Essas pessoas são o cerne da questão habitacional no Brasil e precisam de investimento direto por parte do governo para sair da situação em que estão. E não podemos ser ortodoxos com relação aos nossos métodos.

Dar ou financiar uma casa própria não é a única forma de atender às demandas habitacionais de um país. O sonho da casa própria domina o imaginário do brasileiro, mas existem alternativas, como a política de subsídio aos aluguéis, que já se mostrou bastante eficiente em outros países. Pode funcionar aqui também. Nosso déficit habitacional é de 7,9 milhões de residências, sendo que nós temos 6,5 milhões de casas e apartamentos vazios. Talvez o nosso problema não seja produzir mais casas, mas sim garantir acesso ao estoque que já existe.


ISTOÉ – O que é preciso fazer para melhorar a situação da moradia no País?
Raquel

Estabelecer regras de uso do solo urbano para aumentar a oferta de terra à população de baixa renda nos grandes centros urbanos. Nas cidades, o crescimento continua sendo caótico. E quem tem perdido mais com isso é a população de baixa renda, que até vê o crédito aumentar, mas não para ela. E, mesmo que aumente, acaba tendo que comprar um terreno longe de onde trabalha, onde não existe escola, hospital, delegacia de polícia.

É preciso também dar continuidade às políticas de transformação das favelas em bairros. Isso inclui não só a urbanização em termos de infraestrutura, mas a regularização administrativa também – dar nome às ruas, número às casas, definir o código de logradouro, etc. Isso acabaria com a ambiguidade que ainda existe até em favelas urbanizadas – afinal, essa região está ou não integrada à cidade? Esse processo de regularização plena é um desafio. Mas precisa ser feito. Precisamos investir pesadamente nesse modelo por pelo menos 15 anos para ter um cenário totalmente diferente.

ISTOÉ – Sua primeira missão pela ONU foi para as Ilhas Maldivas, que correm risco por causa da elevação do nível do mar. O que constatou?
Raquel

Fui acompanhar o impacto do aumento do nível dos mares na moradia da população local, mas acabei descobrindo um profundo processo de mudança pelo qual passa a sociedade. Lá, o sistema de distribuição de terras que funcionou durante três mil anos entrou em colapso com a recente industrialização. Hoje, além da habitação, as Maldivas se esforçam para criar uma estratégia de adaptação para a população. Se tudo der certo, minha próxima missão será para os EUA para ver, de perto, como está a recuperação de Nova Orleans. Também vou me dedicar ao estudo, nos Estados de Ohio e Flórida, dos impactos da crise sobre a habitação dos americanos.


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