Guel Arraes poderia ter seguido os passos do pai, o histórico líder de esquerda Miguel Arraes. Mas optou pela arte e tornou-se um dos mais prestigiados diretores de TV e cineastas do País, com um dom natural para a comédia. Ao fim e ao cabo, não se afastou tanto assim de suas origens. “A política é uma atividade séria e toda atividade séria é boa de ser sacaneada”, dispara. Foi sob esse lema que Guel Arraes resolveu filmar O Bem Amado, que estreou na sexta-feira 23 nos cinemas. A obra de Dias Gomes, originalmente criada para o teatro, fez sucesso como novela na TV nos anos de 1960. Para chegar às telonas, no entanto, foi preciso “atualizar” o texto. A parte mais difícil foi criar um personagem de esquerda que rivalizasse com o conservador prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu. “A realidade política mudou. Teria sido fácil só chutar a direita, mas a esquerda também tem defeitos, uma tendência totalitária”, explica Arraes, que fala com propriedade e não teme críticas. Nessa entrevista exclusiva à ISTOÉ, Guel Arraes opina ainda sobre as eleições e convoca a sociedade a se interessar mais por política. Embora se diga eleitor de Lula, não vota automaticamente em Dilma Rousseff. “Temos três bons candidatos, genuinamente preocupados com o social. Resta saber quem conseguirá fazer mais.”

Clique nos players abaixo e confira o trailer de "O Bem Amado" e a dois blocos do bate-papo com Marco Nanini, protagonista do novo filme dirigido por Guel Arraes.

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Ele é "O Bem Amado"

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Marco Nanini, o humorista
 

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Trailer de "O Bem Amado" 

ISTOÉ

O Bem Amado estreou comercialmente na sexta-feira 23. Era sua intenção levar para a telona uma sátira política às vésperas da eleição?

Guel Arraes

Foi meio coincidência. O lançamento estava previsto para janeiro passado, mas houve uns atrasos na distribuidora. Não sei se é boa coincidência. Se as pessoas estiverem dispostas a ver política no cinema, mesmo para rir, vai ser ótimo. Se estiverem cansadas de política, vai ser péssimo.

ISTOÉ

Quem assistir ao filme vai pensar melhor na hora de votar?

Guel Arraes

Acho que toda comédia ajuda a gente a pensar, ela é feita para isso.

ISTOÉ

O sr. fez várias atualizações à obra original de Dias Gomes. Quais as diferenças entre o Odorico de Paulo Gracindo e o de Marco Nanini?

Guel Arraes

Houve muitas adaptações no texto, mecanismos que foram trazidos para o presente como a corrupção, o superfaturamento de obras. Odorico, na peça e na TV, era aquele coronel de terno branco, um personagem típico dos anos 30, um clichê que não existe mais. Esse novo Odorico é mais barroco, tem toda a pompa, é um sujeito pretensioso.

ISTOÉ

O Brasil ainda é um País de coronéis?

Guel Arraes

Acho que não. Quando O Bem Amado ia para o ar na novela, a gente ria das coisas trincando os dentes. Era ditadura. Sabia-se que o tema principal não estava ali, e fazia-se uma sátira a um político do interior, pois mal ou bem era uma crítica dos vícios da política. Hoje em dia, há democracia e todos sabem o que se passa. É um riso mais franco. Da mesma maneira, antes você não criticava a esquerda. E hoje é preciso criticá-la. A criação de um personagem de esquerda foi outra atualização importante.

ISTOÉ

A necessidade de um antagonista?

Guel Arraes

Isso. Do ponto de vista dramatúrgico faltava esse antagonista. Quem poderia ser? Um cara de esquerda, claro. Mas dava para ser um herói. E aí começaram os meus problemas. Foi a parte mais difícil, porque não há uma tradição de crítica à esquerda. E tinha que ser um cara que representasse fielmente a esquerda de hoje, com seus vícios do poder. Não dava para ser apenas aquele sujeito militante, um babaca quase religioso. Mas também não dava para tachar de ladrão, porque não é essa a essência da esquerda, embora haja ladrões dos dois lados. Então inventei o Vladimir, dono do único jornal da cidade e que faz oposição.

ISTOÉ

E como ficou esse personagem?

Guel Arraes

É o cara que se acha dono da verdade. Ele não tem um tostão, se veste mal. Mas qual é o perigo, o defeito da esquerda, o vício? É ser antidemocrático. Pois a esquerda tem a certeza de que está fazendo o bem da maioria, e acaba atropelando essa maioria. Então, não há problema em se fraudar eleições, desde que seja para a esquerda ganhar, porque somos os donos da verdade. Os fins justificam os meios.

ISTOÉ

Tudo em nome do poder?

Guel Arraes

Exato. Tentam chegar ao poder para fazer o bem para o povo, mas de boas intenções o inferno está cheio.

ISTOÉ

Mas na política brasileira, quem é o Odorico hoje?

Guel Arraes

Isso eu não digo, não. O Dias Gomes não disse isso em 1962, não sou eu que vou dizer agora. Ele pode ter se inspirado no Getúlio, no Jânio e até no Juscelino. O Odorico não é um determinado político, mas um personagem síntese. Cabe a carapuça em muita gente, pois ele contém os defeitos de vários políticos. E mesmo que o cara não se encaixe no perfil, do ponto de vista da moral e da ética, pode ter o estilão. Pois o político é um ator também. É um cara que atua, e cada um tem seu estilo. Uns mais calmos, otimistas, outros mais radicais. O comício nada mais é que espetáculo teatral.

ISTOÉ

O sr. acha que o eleitor tende a perdoar esse tipo de político?É o velho complexo de vira-lata?

Guel Arraes

Pela ótica de um diretor de TV e cinema, é a questão do líder carismático, do pai. Os analistas dizem que a ausência de partidos fortes permite a ligação direta do povo com o dirigente, num paternalismo político. Meu pai em Pernambuco era chamado em alguns locais de “pai Arraes”, então isso era identificado como mecanismo afetivo de filho para pai. O Lula mostrou ser maior que o PT. Acho que é um pouco cultural e da estrutura da formação da coisa política. Uma sociedade pouco educada e informada tende a alimentar isso, e não o debate de ideais.

ISTOÉ

E há algo de Odorico em algum dos três candidatos à Presidência?

Guel Arraes

Caramba, não sei. Acho que no Odorico há tudo de político, mas é um político conservador. E temos três candidatos mais progressistas. Talvez haja algo de Vladimir neles.

ISTOÉ

E isso é bom?

Guel Arraes

Foi bom ter feito o Vladimir. Teria sido fácil só chutar a direita. Então valeu o esforço de termos feito esse personagem. O fato é que nossa realidade política mudou muito. Hoje você não tem tanto aquele cara que troca votos por cesta básica, mas tem coisas maiores. A questão do mensalão é muito mais grave, pois ocorre em outro patamar. A verdade é que temos tido muita sorte nos últimos anos. Tivemos o Fernando Henrique, depois o Lula e agora três candidatos de esquerda, genuinamente preocupados com política sociais e melhor distribuição de renda. Antigamente era o Maluf o cara mais progressista na campanha. Isso tudo dá mais esperança, mas temos que seguir vigilantes.

ISTOÉ

Denúncias como o mensalão abriram espaço para se criticar a esquerda?

Guel Arraes

Foi exatamente isso que abriu. Pois a esquerda chegou ao poder e mostrou suas qualidades e defeitos. É nossa responsabilidade mostrar isso. Mas tive a preocupação de mostrar que há saída para a política, e que não podemos nos descuidar dela, pois corremos o risco de sermos vítimas de uma nova ditadura.

ISTOÉ

E quando se tem um grande escândalo, surge aquele discurso de que essa liberdade permite a corrupção…

Guel Arraes

Exatamente. Eu conheço os bastidores da política e muitos políticos trabalham mais do que qualquer profissional comum. É claro que não dá para fazer um filme sobre um deputado honesto, pois é bom que haja vigilância. E temos muitos picaretas… O problema é que a generalização vai servindo para uma atitude antidemocrática.

ISTOÉ

Houve, nos últimos anos, várias tentativas de controle da imprensa. Qual sua opinião?

Guel Arraes

Há dois lados a se analisar. Às vezes acontece de a imprensa entrar na dinâmica do denuncismo oportunista, que incentiva esse sentimento de que é tudo ruim. Por outro lado, é um dos defeitos da esquerda não aceitar críticas, como eu dizia antes. Ela tem uma tendência totalitária que precisa ser combatida.

ISTOÉ

O sr. teme ser criticado por criticar a esquerda?

Guel Arraes

Fiquei bastante preocupado quando terminei o filme, não pela esquerda, mas por minha família. Para mim é quase uma questão familiar, minha irmã Ana Arraes é deputada federal, meu sobrinho Eduardo Campos é governador, meu pai Miguel Arraes foi um político que admirei e admiro muito. Meu primeiro público era esse, mas correu tudo bem. Minha irmã gostou. O Eduardo eu não sei, pois não falei com ele ainda.

ISTOÉ

O que achou do filme “Lula, filho do Brasil”?

Guel Arraes

Fiquei espantado por que achei que fosse dar mais bilheteria. Pouco importa se é mais ou menos bem feito. Interessou como pesquisa. É quase um documentário, mas também um dramalhão, um melodrama. Tem um substrato da vida ali.

ISTOÉ

Mas a popularidade de Lula não se traduziu em bilheteria.

Guel Arraes

Muita gente diz que quem derrubou o filme foi o próprio Lula. Que as pessoas preferem ver o Lula ao vivo. O Lula é um espetáculo dele mesmo, uma representação dele mesmo.

ISTOÉ

O eleitor ainda vota com o coração?

Guel Arraes

Acho que sim, mas cada vez menos. E por isso acho interessante O Bem Amado, porque serve como pesquisa do tema da política. Faz comédia com os mecanismos reais da política. Para fazê-lo, pensei que as pessoas estão tão interessadas na política, que querem criticar os maus políticos.

ISTOÉ

Em quem o sr. votou para presidente na última eleição?

Guel Arraes

Sempre votei no Lula. Só uma vez votei no Brizola no primeiro turno.

ISTOÉ

E já tem candidato para outubro?

Guel Arraes

Não. Acho que está muito empatado. Vai depender de estudarmos mais para saber quem poderá fazer mais. São três bons candidatos.

ISTOÉ

Seu Estado natal sofreu recentemente com as chuvas, pois não recebeu o dinheiro necessário para prevenção. Pessoas morreram. É o efeito Sucupira?

Guel Arraes

Moro e voto no Rio, mas Pernambuco é a terra onde nasci. E dá uma revolta, fica uma mágoa. Daí a necessidade de termos bons administradores públicos, políticos comprometidos com o bem estar. Tem gente que acha que política não serve para nada. Eu digo: é a arte das artes. Você pode salvar a vida de muita gente, ou jogá-las para a morte. Se os políticos que elegemos antes não fizeram o trabalho direito, qual a saída? As próximas eleições, ora. E cabe à imprensa denunciar. Assim, a prática da democracia vai se aperfeiçoando.

ISTOÉ

Auto da Compadecida e Caramuru são sátiras sociais. O sr. também criou séries de TV nessa linha. Dominar a comédia ajuda a abordar a política?

Guel Arraes

É curioso. No início da minha carreira, achava que ia fazer algo do tipo Glauber Rocha ou Godard. Mas como aquele jovem que quer se diferenciar do pai, acabei como diretor de comédias de costumes, como TV Pirata, Armação Ilimitada e Comédia da Vida Privada. Mas nunca tinha feito uma coisa essencialmente política. A política é uma atividade séria, e toda atividade séria é boa de ser sacaneada. É curioso que não tenhamos tido mais comédias do gênero num país com tão bons políticos comediantes.

ISTOÉ

O sr. passou a infância assistindo filmes no Cine São Luis, hoje revitalizado. O que mudou de lá pra cá no cinema brasileiro?

Guel Arraes

O que mudou foi a televisão. O fato de você ter uma indústria de imagem muito semelhante à da indústria cinematográfica. Na verdade, nossa Hollywood é a televisão. E uma das grandes novidades da retomada é ter filmes que comunicam com o público e com interesse artístico. Quem faz cinema passou a entender melhor o público por causa da televisão.

ISTOÉ

Está de acordo com as políticas de incentivo do governo?

Guel Arraes

De alguma maneira, desde o Fernando Henrique, elas têm permitido que o cinema brasileiro exista. Mas é preciso se preocupar com o público. Não existe cinema, fora o americano e o indiano, que não seja financiado. Então, acho que teria que ter mais gente preocupada em fazer filmes de público. Não adianta você ter quatro filmes que dão três milhões de bilheteria e 70 filmes que dão, cada um, 20 mil. Os editais já estão mudando, mas os cineastas também têm que abandonar aquela herança do filme de autor. E o cinema tem também que se aliar à TV. O público que paga R$ 15 para ir ao cinema no shopping é restrito. Há um imenso público popular que quer ver cinema, mas não tem dinheiro.