Em algumas passagens, o cheiro de arenque e do pão de centeio parece exalar das páginas. No romance que revive o universo judaico da Varsóvia antes da ocupação nazista (1939-1945), o escritor Isaac Bashevis Singer mostra como ninguém cada detalhe do cotidiano, embora também use recursos do fantástico. Shosha (Editora Francis, 300 págs., R$ 27,50) conta a história de amor entre um jovem escritor, Aaron Greidinger, e a amiga de infância que dá título à obra. Desprendido e talentoso, Arele, como é carinhosamente chamado, encanta as mulheres. Da amante marxista à atriz americana empenhada em atuar no teatro ídiche da Polônia, passando pela mulher de seu melhor amigo, todas giram em torno dele. Nem Tekla, uma criada de origem camponesa, resiste a seu fascínio involuntário. Mas o foco do seu desejo é Shosha, uma garota imune à passagem do tempo, que continua infantil de corpo e espírito mesmo na idade adulta.

Publicado originalmente em 1974, em capítulos, no jornal The Jewish Daily Forward, de Nova York, Shosha foi editado em livro quatro anos depois, na mesma época em que Singer ganhou o Nobel de Literatura. Retrata uma época em que quase quatro milhões de judeus viviam na Polônia. Nessa comunidade, um dos mais efervescentes cenários era a rua Krochmalna, pela qual circulavam, com a mesma desenvoltura, rabinos, famílias que seguiam à risca os preceitos do judaísmo, taberneiros e prostitutas. Um mundo aniquilado pelo nazismo após ser hostilizado pelos próprios poloneses.

Como seu personagem, Singer viveu na rua Krochmalna, escrevia em ídiche e era filho de um rabino hassídico, seguidor da corrente nascida em meados do século XVIII na Polônia e na Ucrânia, inspirada na cabala. Sua obra é permeada por esse sistema filosófico-religioso. Um dos mais consagrados escritores do século XX, seguramente o maior nome da literatura ídiche do período, Singer emigrou para Nova York em 1935. Continuou escrevendo em ídiche até morrer, na Flórida, em 1991. A manutenção de uma série de termos ídiches na atual tradução restringe as possibilidades de apreciação da obra para o leitor não familiarizado com o idioma e a cultura judaica. Um problema simples de resolver, com notas do tradutor.