O medo venceu a esperança? Durante a campanha presidencial de 2002, os adversários de Lula centraram fogo no abalo que um torneiro mecânico poderia causar à economia brasileira. Sua vitória foi consagrada com a frase “a esperança venceu o medo” e a estabilidade econômica se tornou um dos trunfos do governo. Pelo menos por enquanto, essa mesma estabilidade tem servido de escudo para o presidente em meio à crise. O medo, no entanto, voltou-se para o flanco que mais parecia seguro: o da defesa da ética e da luta contra a corrupção. À mercê de depoimentos bombásticos, intrigas, malas, cuecas e mensalões, a população está perplexa. Um temor difuso, provocado pelo desmoronamento de antigos portos seguros, soma-se aos já conhecidos fantasmas do desemprego, dos assaltos relâmpagos e das balas perdidas. “Nem o crítico mais ferrenho esperava isso desse governo e desse partido, por isso a estupefação”, acredita o sociólogo da Unicamp Ricardo Antunes, rompido com o PT há dois anos. “A população teme que, passada a crise, conceitos como integridade e ética estejam em ruínas e que não se recupere o limite entre público e privado.”

Para a cientista política Maria Victoria Benevides, do Conselho de Ética da Presidência, a falta de certezas faz com que pobres e ricos temam o impeachment. “Há a impressão de que, ruim com ele, pior sem ele. E nem os oito milhões de famílias beneficiadas pelo Bolsa-Família nem o empresariado satisfeito com a economia querem correr riscos”, diz. “Temo que os jovens, decepcionados, abdiquem de qualquer participação política.” A apreensão da classe empresarial pôde ser atestada na terça-feira 16, quando o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Furlan, em almoço na Federação do Comércio de São Paulo, fez um apelo para que os empresários mantivessem a calma: “O Brasil não vai acabar. Vai sair melhor desse aperto”, disse.

São muitos os tipos de medo. Da crise, da solidão, da velhice, do fogo, do mar, de avião, da morte, do bicho-papão, do câncer, da Aids, do amor ou de ser traído. Esse sentimento ancestral nada mais é do que um mecanismo de defesa que garante a sobrevivência e funciona como alerta do cérebro diante de um perigo real ou imaginário. “O medo é essencial para a nossa sobrevivência. Se fôssemos destemidos, não estaríamos vivos”, explica o psiquiatra José Pitta, da Unifesp. Situações de incerteza, como a atual, trazem o que se chama de “ansiedade antecipatória”, com a antevisão de situações catastróficas. “O medo seria o segundo sistema de defesa e vem com um risco definido, como um ataque de um cão. O terceiro é desencadeado quando o risco de destruição é iminente. Aí a reação é de pânico”, explica o psiquiatra Márcio Bernik, do hospital de Clínicas de São Paulo. Especialista em pacientes com fobia (medo patológico de intensidade desproporcional ao possível risco), Bernik chama atenção para o aumento de casos de stress pós-traumático, transtorno que afeta vítimas de seqüestro, assalto, abuso sexual e violências físicas. “São oito novos pacientes nos últimos 30 dias. Há cinco anos, eram dois por ano”, relata.

Desemprego – A reação do corpo quando se instala o medo é de paralisia externa e intensa atividade interna, com grandes alterações no organismo. Para o homem, animal social por excelência, estas reações podem ser desencadeadas até mesmo com uma bronca do chefe. “O homem defende seu nicho social com a mesma intensidade como protege a vida. No sistema evolutivo, ser banido do grupo poderia representar a morte”, explica ainda Bernik. Pode-se imaginar a magnitude que isso ganha com os altos índices de desemprego, que, segundo o IBGE, no mês de junho, atingiu dois milhões e 50 mil pessoas, nas seis regiões metropolitanas do País. Ou seja: 9,4% da população economicamente ativa.

Em busca de ofertas de trabalho e do seguro-desemprego, mais de dois mil desempregados procuram todos os dias o Centro de Solidariedade ao Trabalhador, em São Paulo. Na quarta-feira 17, o casal Pedro Albuquerque de Almeida, 52 anos, e Adriana Patrícia da Rocha, 32, enfrentou a fila. Ela, catarinense, desempregada há três anos, tinha em vista uma das vagas em confecção. Ele, paulista, trocou São Paulo pela pequena Indaial (SC) para ser supervisor em uma indústria de resina, mas foi demitido há duas semanas. Calculando cada real resgatado do fundo de garantia, seu limite sem emprego é de três meses. Amedrontado, ele teme a chegada do quarto mês. “Acordo e já começo a dar telefonemas, a passar e-mails e a agendar entrevistas. O stress é constante”, diz Almeida.

Presidente da International Stress Management Association do Brasil (Isma-BR), Ana Maria Rossi explica que a tensão caminha de mãos dadas com o temor. “Nem todo estressado sente medo, mas quem tem medo sofre stress. Os dois sentimentos desencadeiam reações fisiológicas semelhantes”, diz. Estudo feito pela Isma-BR mostrou que a falta de segurança é o que mais estressa a população brasileira. Das 752 pessoas de 25 a 60 anos entrevistadas, 71% mencionaram a violência como fonte de stress. O desemprego ficou em segundo lugar, citado por 57%. O jurista, jornalista e psicanalista Ruy Fernando Barboza, 62 anos, sentiu isso na pele em 2002. De passagem pelo Rio de Janeiro, foi vítima de uma bala perdida de fuzil que, durante um tiroteio na Linha Amarela, na zona norte carioca, perfurou o carro e se alojou na sua coxa esquerda. “Quando me vi no hospital, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi ‘aconteceu comigo’”, recorda. Durante um ano, Barboza fez oito cirurgias, teve infecção hospitalar e embolia pulmonar. “Chorei todas as vezes que tive vontade. E descobri que escrever é uma terapia.” Atualmente, Barboza mora numa praia em Florianópolis (SC). A bala continua em sua coxa, mas ele não dá bola para a falta de sensibilidade no pé esquerdo e fortalece a musculatura da perna com aulas de dança de salão.

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A violência lidera a lista de temores na juventude. Dos 3,5 mil jovens de 15 a
24 anos ouvidos para a pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, do Instituto Cidadania, 27% apontaram a violência como o problema que mais os preocupa.
Em 2000, 38,7% dos homicídios concentravam-se nessa faixa etária, segundo o IBGE. Vítima de um seqüestro relâmpago há dois meses, a professora de circo paulistana Marina Mansur, 21 anos, ficou traumatizada. “Fiquei quatro dias sem dormir. Aos poucos, graças a um tratamento homeopático, fui me recuperando”,
diz a jovem. Marina estacionava o carro ao ser rendida por dois homens armados. “Jogaram-me no banco de trás e tentaram retirar meu dinheiro do banco”, explica.
A conta estava quase vazia. “Os bandidos ficaram furiosos. E, em meio a gritos
de ‘apaga essa vaca’, decidiram ir a outra agência”, lembra. Depois, contentaram-se com R$ 40 e largaram a jovem numa estrada deserta. “Até hoje
não sou muito fã de estradas desertas.”

Saída – Um agravante para as situações de medo é a exposição constante a
uma ameaça. Situações que perduram sem solução à vista aumentam o medo
e a angústia e multiplicam o sentimento de impotência. Uma das saídas é relativizar a ameaça e procurar meios de se sentir potente. Como fazer isso? “Tocar a própria vida, desenvolver seus próprios recursos e melhorar o que está ao seu alcance. Evitar a paralisia e focalizar a energia psíquica no que depende de você. Isso dá sensação de poder e aplaca a angústia e o medo”, aconselha Leila Cury Tardivo, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Então, mãos à obra. E nada de pânico.


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