Naquela fatídica manhã de 22 de julho, o eletricista brasileiro Jean Charles de Menezes tinha um encontro marcado com seu amigo e parceiro, o pedreiro Gésio de Ávila, 37 anos, quando a morte o encontrou. Por volta das 10h30, ele foi executado com oito tiros – sete na cabeça – pela Scotland Yard (a polícia metropolitana de Londres) num vagão do metrô da estação Stockwell. No dia anterior, atentados frustrados tinham deixado os londrinos em pânico, com a memória ainda reverberando os ataques terroristas de 7 de julho, que mataram 56 pessoas. “Nós íamos trocar a central de alarme de incêndio num flat”, contou Gésio de Ávila a ISTOÉ. Jean foi confundido com Hussein Osman, um dos autores dos ataques fracassados, que morava no mesmo prédio que o brasileiro, em Tulse Hill, zona sul de Londres. Mas o que parecia uma fatalidade se revelou uma sucessão de equívocos catastróficos. A lendária polícia britânica não apenas matou um inocente como mentiu deliberadamente ao dar sua versão dos fatos. Imagens veiculadas pela emissora de tevê britânica ITN desmontaram a versão policial de que Jean vestia um casaco pesado de inverno e levava uma mochila – o que poderia justificar a suspeita de ele ser um homem-bomba –, e de que fugiu dos policiais e pulou as catracas do metrô. Ao contrário, as imagens revelam o eletricista vestindo uma jaqueta jeans leve, passando tranqüilamente pela roleta com um tíquete pré-pago e até pegando um jornal gratuito distribuído no metrô. Jean só correu quando viu o trem estacionado na plataforma. Ele também não recebeu ordem de prisão e estava imobilizado quando foi alvejado. A ITN teve acesso a documentos secretos da Independent Police Complaints Comission (IPCC, a comissão independente que investiga as queixas contra a polícia). Como se não bastasse, outros veículos da mídia britânica revelaram que o comissário Ian Blair, chefe da Scotland Yard, tentou obstruir as investigações da IPCC sobre o assassinato de Jean Charles de Menezes.

No banheiro – Alguns detalhes são fundamentais para se entender como a polícia chegou a confundir o brasileiro com o fracassado terrorista Hussein Osman. Segundo a reportagem da ITN, o policial que monitorava o prédio em que Osman e Jean moravam foi ao banheiro no exato momento em que o brasileiro saiu do edifício, às 9h30 da manhã do dia 22 de julho. Assim, ele informou à central que não poderia ter certeza de que o homem que saíra era o suspeito Osman. O policial teria então sugerido uma checagem. Pelo visto, não foi levado a sério.

De acordo com o jornal Daily Mirror, a oficial de polícia responsável pela operação, Cressida Dick, determinou que o suspeito fosse capturado vivo em vez de ter dado a ordem para matá-lo, como se veiculara anteriormente. Os policiais resolveram seguir o eletricista, acionando em seguida o CO19, um comando especializado e autorizado a atirar para matar suspeitos de terrorismo. “Jean foi visto correndo na plataforma e entrando num vagão antes de ocupar um assento”, diz o documentário da ITN. Um policial à paisana que se sentou perto do eletricista disse à ITN que o brasileiro se levantou quando viu homens armados chegarem. “Ele avançou em minha direção e dos agentes. Empurrei-o de volta ao assento.” Em seguida, o eletricista foi imobilizado e levou os tiros à queima-roupa. “Sabemos claramente agora que Jean Charles não estava fazendo absolutamente nada para levantar qualquer suspeita. Ele só teve a infelicidade de morar num prédio sob vigilância e de ser levemente moreno”, disse a advogada Harriet Wistrich.

Pressões – A ITN revelou ainda que, no mesmo dia em que ocorreu o incidente,
o comissário Ian Blair escreveu ao Ministério do Interior sugerindo que a ação da IPCC sobre o caso não deveria ser prioritária em relação às investigações da
polícia sobre os suspeitos dos atentados do dia 21 de julho. Embora o Ministério tenha rejeitado a “sugestão” de Blair, somente cinco dias depois da morte de
Jean a polícia enviou os dados do caso à IPCC. Segundo as advogadas de defesa do brasileiro, Gareth Peirce e Harriet Wistrich, esse fato, por si só, comprometeu a credibilidade das investigações. “Nada do que a polícia havia dito desde o início
era verdade. Queremos enfatizar agora que não podemos mais confiar no processo investigativo como está sendo realizado”, disseram as advogadas em nota, na
qual pedem uma investigação pública sobre o caso. “A versão da polícia não apenas era incorreta, mas o público foi deliberadamente enganado com mentiras
e meias-verdades”, disse Assad Rehman, porta-voz da campanha Justiça para Jean Charles de Menezes.

O governo brasileiro enviará a Londres, na próxima semana, uma missão do Ministério Público Federal e do Ministério da Justiça para acompanhar as investigações da IPCC. “As mais recentes notícias, acompanhadas de imagens
de forte impacto, relativas às circunstâncias trágicas que resultaram na morte do cidadão brasileiro Jean Charles de Menezes, agravaram o sentimento de indignação do governo brasileiro”, diz uma nota do Itamaraty.