O avião decolou do Rio de Janeiro e embicou para Belém num céu de brigadeiro. Praticamente não havia nuvens entre as janelas dos passageiros e o mundo lá embaixo. E o vôo, com três horas de duração e praticamente sem serviço de bordo, era um convite irrecusável a aproveitar a estiagem para ver, ao vivo, o que não passava de um mapa colorido de verde sólido nas aulas de geografia, do tempo em que as escolas tinham aulas de geografia.

A rota percorria a linha imaginária daquilo que o Brasil sempre chamou de sertão, uma autêntica Tordesilhas do interior supostamente impenetrável. Mas cadê o sertão? Com a estiagem amarelando a serra do Espinhaço, na primeira hora da viagem o mar de morros descascados foi logo avisando que tudo o que havia a conquistar o País já conquistou. Dali, a mais de dez mil metros de altitude, não se via uma nesga de terra sem a marca da grande marcha para o oeste, que levou a civilização brasileira a bater nos contrafortes dos Andes.

“É uma paisagem cicatrizada pelo trabalho humano”, dizia o historiador Warren Dean, de um jato como esse, logo no primeiro parágrafo de A ferro e fogo, o réquiem da Mata Atlântica. Ele inventariou seus resultados há mais de 13 anos, pelas “voçorocas alaranjadas e gredosas, incisões talhadas por séculos de mineração, a agricultura e pecuária imprevidentes” na “colcha de retalhos”, onde as estradas parecem “abertas por formigas cortadeiras”.

Mas ele não viu, embora adivinhasse, o que viria depois. Faltou-lhe o cerrado, Brasil adentro, onde a topografia se acalma e o sertão vai ficando cada vez mais geométrico, como se fosse desenhado a régua e compasso. Em fins de agosto, a seca acentuava os círculos exatos dos campos verdes, irrigados pela chuva artificial de longos braços pivotantes. A seu redor, as cercas repartiam os pastos com traços retos. As máquinas agrícolas acabavam de pentear o solo em sulcos uniformes. E, onde alguém se lembrou de fingir que cumpre os requisitos da reserva legal, os tufos de vegetação mais ou menos nativa pareciam ainda mais artificiais do que as áreas cultivadas, com seus recortes triangulares, quadrados, trapezoidais, no meio da ganância generalizada.

Nesse ritmo, entrou-se na Amazônia sem perceber. O Brasil só voltaria a ser ele mesmo, em sua esfuziante bagunça primordial, pouco antes do pouso, quando o avião contornou, em longa curva, as matas encharcadas das várzeas que cercam Belém. Mas aí era tarde. A maior parte do País já tinha ficado para trás, quase irreconhecível nesta época do ano, selvagem de menos, organizada de mais. Nesta terra onde se reclama tanto da desordem urbana, mal se fala do excesso de ordem agrícola no campo, onde a desordem original faz tanta falta.

Aonde foi parar a natureza exuberante e caótica, que fez o escrivão Pero Vaz de Caminha confessar ao rei dom Manuel que era impossível descrever este pedaço do novo mundo, porque aqui só se viam árvores por todos os lados na baía do descobrimento? Talvez na gravura em que, 200 anos atrás, o diplomata Claude François Fortier, Conde de Clarac, às portas do Rio de Janeiro, reproduziu folha a folha sua espantosa profusão de formas. Ela é o modelo clássico da floresta tropical nos museus europeus. E começa a fazer falta nas cartilhas escolares, para que os brasileiros cresçam conhecendo o lugar em que nasceram.