Nos 30 anos de Poema sujo,Ferreira Gullar cobra uma reformaprofunda do País e afirma que adroga é uma ameaça à civilização

Poema sujo, segundo o falecido jornalista e escritor Otto Maria Carpeaux, merecia se chamar “Poema nacional, porque encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro”. A emblemática obra, de 70 páginas, foi escrita por Ferreira Gullar há 30 anos, quando ele estava exilado na Argentina, foragido da ditadura brasileira. Era uma declaração de amor terminal de um homem que, escondido em um quartinho de Buenos Aires, rabiscava versos para não morrer. Prestes a completar 75 anos, no dia 10 de setembro, o poeta olha para trás e afirma: “Valeu a pena porque perseguir o ideal de uma sociedade melhor é um objetivo que nunca se concluirá, mas do qual não podemos abrir mão.”

Ao receber ISTOÉ em seu apartamento de cinco quartos em que vive há 24 anos, em Copacabana, zona sul carioca, ele estava assistindo a um depoimento da CPI. Mostra-se irritado com a política e os políticos. Ex-integrante do Partido Comunista, um dos fundadores do grupo Opinião e ex-presidente do Centro Popular de Cultura, da UNE, ele migrou de status: deixou de ser maldito para ser querido. Escreve um novo livro, é cronista do jornal

Folha de S.Paulo

, acaba de receber o Prêmio Machado de Assis, da ABL – onde nunca quis entrar –, lança o livro infantil

Dr. Urubu e outras fábulas

(Ed. José Olympio) e recebe pencas de convites diariamente. Gullar, que foi presidente da Funarte no governo de Itamar Franco, sobreviveu para contar histórias. Como as relatadas em peças, livros ou as que se seguem.

ISTOÉ – O que o sr. acha das transmissões das CPIs?
Ferreira Gullar

Tem certo drama porque é um assunto grave que diz respeito
à vida política brasileira. Mas tem comédia também: os caras prestarem
depoimento com a permissão de não dizer a verdade, de se negar a responder,
é uma palhaçada. Do outro lado, os deputados e senadores ficam fazendo
discurso de palanque, repetindo perguntas. Tudo isso indica a necessidade de
uma reforma profunda. Não existe uma sociedade sem governo e a forma de
governo mais aconselhável que se conhece é a democracia, é a representação popular mediante a eleição. O jeito, então, é reformar as normas que regem as disputas políticas e a constituição das autoridades.

ISTOÉ – O sr. foi exilado, preso, perseguido. Valeu a pena?
Ferreira Gullar

Claro. A vida é uma coisa inventada por nós e constituída por nós. Existem erros, fracassos, equívocos, injustiças, mas a nossa função no mundo é fazer a justiça e lutar por uma sociedade melhor. Esse é um objetivo que nunca se concluirá, mas do qual não podemos abrir mão nem desistir. O que está acontecendo é lamentável, mas é bom também porque está sendo revelado e nos permite corrigir. Na verdade, a transmissão dessas CPIs transformou o Brasil numa grande assembléia. Todo mundo está discutindo o assunto. Eu tenho conhecidos que têm horror a política e agora não falam em outra coisa. Isso politiza o País, abre os olhos das pessoas e aguça a responsabilidade delas.

ISTOÉ – Em um artigo na Folha, o sr. disse que este é o primeiro e único mandato de Lula. Mas as pesquisas mostram que ele é forte candidato.
Ferreira Gullar

Eu disse que era minha modesta opinião. Não sou dono da verdade. Mas não há dúvida de que o desgaste que o PT está sofrendo, o desmoronamento e a desmoralização do partido, torna muito difícil a reeleição de Lula. Com o que ele vai fazer essa campanha? Com esse partido? Sob a bandeira da ética? Uma coisa é o prestígio pessoal do Lula, outra é o embate nas eleições. Acho difícil ele se eleger, não estou dizendo que não se elege, mas vai ter de fazer uma campanha baseada só nele mesmo. No PT é que não.

ISTOÉ – O sr. ainda é do Partido Comunista?
Ferreira Gullar

Não existe mais Partido Comunista. O Partido Comunista ao qual eu pertenci se transformou no PPS. Entrei para o Partido Comunista no dia do golpe de 64 (1º de abril), em grande parte por solidariedade aos meus companheiros de luta na resistência contra o golpe, a ditadura que estava nascendo. O Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE, tinha acabado de ser destruído, não havia mais organização nenhuma. O partido era uma organização clandestina que, portanto, ia sobreviver. Então era o caminho para eu continuar resistindo ao que estava acontecendo.

ISTOÉ – Poema sujo comemora 30 anos. É a obra que considera mais importante?
Ferreira Gullar

Comecei a escrevê-lo em março e terminei em outubro de 1975. Eu estava exilado na Argentina, onde também tinha se instalado a ditadura e as pessoas começavam a sumir. A polícia secreta da ditadura brasileira acionou a da Argentina e eles estavam catando exilados lá. Iam acabar me achando. Eu escrevi o Poema como se pudesse ser a última coisa que faria – por isso, a idéia de fazer um resgate de toda a minha vida, dar o meu testemunho final.

ISTOÉ – Foi doloroso escrevê-lo?
Ferreira Gullar

O T.S. Eliot (poeta americano) disse que a gente escreve para se libertar da emoção. Ruim é estar sofrendo, mas escrever é uma libertação. No momento em que escrevo não há dor, só prazer de criar, de ver nas palavras a expressão da vida. Só o fato de eu estar escrevendo fazia com que eu não fosse exilado. Os problemas todos sumiam. Eu era somente um poeta escrevendo sua obra.

ISTOÉ – Por que ?sujo??
Ferreira Gullar

Ele é sujo por três razões: uma, porque não tem nenhuma reserva moral. Uso palavras que a moral conservadora convencional não aceita. É sujo porque rompe com uma série de valores estéticos, inclusive meus: é prosa, mistura tudo, não tem nenhuma conveniência do ponto de vista formal e literário. E é sujo porque fala da miséria brasileira, que é a maior sujeira que existe neste país.

ISTOÉ – Foi lançado no Brasil sem sua presença, não é? Como chegou aqui?
Ferreira Gullar

É, o lançamento foi feito pelos amigos. Houve uma noite de autógrafo sem o autor. Chegou aqui através de uma fita cassete, trazida pelo Vinicius (de Moraes). Na fita, eu leio o poema inteiro. Isso aconteceu a partir de um encontro nosso, em Buenos Aires, na casa do Boal (Augusto Boal, dramaturgo), que também estava exilado lá. No Rio, o Vinicius reuniu amigos para ouvir o Poema, alguns fizeram cópias e organizaram outras reuniões em suas casas e assim ele foi sendo divulgado. Até que o Ênio Silveira, que era meu editor, tomou conhecimento e entrou em contato com a Thereza (Aragão), que era minha mulher, e pediu para que eu mandasse para ele editar

ISTOÉ – Por que o sr. parou de andar de avião?
Ferreira Gullar

Eu tinha um programa na TV Senac e a gravação era em São Paulo. Num vôo de volta ao Rio, o avião deu uma queda tão brusca que quase morremos de susto. Eu pensei: tudo bem, só daqui a um mês é que vou pegar esse troço de novo. Mas quando faltava uma semana para eu viajar, comecei a ficar nervoso, apreensivo. Me acalmei porque, afinal, era muito azar acontecer outra coisa parecida. E aconteceu. Ficamos 40 minutos balançando em cima de São Paulo até conseguir pousar. Quando eu desci daquilo falei: “ fora, acabou o programa, não vou mais vir aqui.” Isso foi em 2002 e nunca mais viajei de avião. Viajar de carro é ótimo!

ISTOÉ – Tem algum método para escrever?
Ferreira Gullar

Não, não tenho método nem faço projeto. Minha poesia nasce do espanto. De alguma coisa que me toca. Pode ser uma palavra, um fato, um cheiro. Tenho rigor, não método. Exigência de buscar a linguagem, a expressão mais econômica possível para dizer as coisas sem prejuízo da emoção, sem me render ao formalismo. É muito mais uma disciplina interior do que externa. Cada poema é uma aventura, não sei o que vai acontecer. É como se eu me jogasse do alto de um edifício sem pára-quedas na esperança de ganhar asas no meio do caminho. Em cada poema posso me esborrachar no chão ou voar.

ISTOÉ – Demora muito para o sr. terminar um poema?
Ferreira Gullar

Quando eu era jovem, escrevia com mais rapidez. Mas hoje tenho muito mais dificuldade para escrever, refaço 15, 20 vezes. E mudo muito. O começo são borrões desorganizados com algumas frases que, de repente, começam a fazer nascer outras coisas que nada têm a ver com a lógica do que estava sendo feito. E aquilo vai ganhando forma, como uma nebulosa, e vira o poema. Estou inserindo cada vez mais desordem na minha poesia.

ISTOÉ – O sr. se considera reconhecido?
Ferreira Gullar

Sim, hoje até recebo prêmios! Eu fui maldito durante bastante tempo. Houve uma época que eu não aparecia nem na história da literatura brasileira. Quando virei militante político nos anos 60, até final da década de 70, me lembro que alguns livros de literatura brasileira não me mencionavam. Hoje é diferente: sou até avenida em minha cidade (São Luís do Maranhão).

ISTOÉ – Considera-se carioca?
Ferreira Gullar

Sou carioca, moro no Rio desde os 21 anos. O Rio é a cidade que
escolhi para viver até o fim. Só saí daqui foragido da ditadura. Claro, a violência
é lamentável, absurda. Mas se deve basicamente à droga, problema muito grave.
A droga ameaça a civilização. Existe uma geração da droga, que é dos anos 60,
que está no poder hoje: delegado de polícia, comissário, executivo, muitos deles continuam cheirando droga.

ISTOÉ – O sr. já usou droga?
Ferreira Gullar

Nunca. Mas dois filhos meus foram destruídos pela droga. Um morreu aos trinta e poucos anos (Marcos, em 1990) e o outro ficou esquizofrênico (Paulo), entrou num surto do qual nunca mais saiu. Eu sei do que estou falando: é uma coisa muito grave. Eu sei que não é politicamente correto falar contra a droga porque muitos que nos cercam são usuários. Mas essas pessoas estão erradas e deveriam assumir o compromisso que têm com a sociedade.

ISTOÉ – O sr. tem duas marcas estéticas: a magreza e os cabelos compridos. Cuida do corpo e dos cabelos?
Ferreira Gullar

Sou saudável. O médico falou que parece que tenho 18 anos. Sou
magro porque como pouco desde criança. A Cláudia (Ahimsa, esposa e poetisa)
me chama de meia-porção. No restaurante, eu só como metade. Quando eu era garoto, cortava o cabelo e ficava todo espetado. Deixei crescer para amansar e gostei. Eu lavo com xampu, só isso. Tem gente que acha bonito. Corto na esquina, com o Darci, custa 12 pratas. Eu não tenho nada contra homem ser vaidoso, até porque acho que a vida é inventada mesmo, cada um faz o que quer. Mas eu não estou preocupado com esse assunto.

ISTOÉ – Por que nunca quis entrar para a ABL?
Ferreira Gullar

Já fui convidado várias vezes. Eu nunca… isso é delicado. As pessoas encaminham sua vida de acordo com seus sonhos, ideais. Nunca esteve em minha proposta de vida entrar em academia. Pelo contrário, fui criado numa mentalidade antiacadêmica. Desde jovem, os escritores que eu admirava, os movimentos literários que despertavam meu interesse eram antiacadêmicos, como o dadaísmo, o surrealismo, o modernismo brasileiro, o Oswald de Andrade, o Sérgio Buarque de Holanda. Hoje sou não-acadêmico. Já fui anti, rebelde. Depois fui compreendendo que sem a instituição a cultura não sobrevive. Se só houver pessoas que façam poesia, romances, a cultura se apagaria. São necessárias as academias, universidades, para manter a tradição cultural, que preserva, passa a herança adiante. Mas, por outro lado, existe o rebelde, o indisciplinado, o inesperado da criação. Eu pertenço muito mais a esse lado, até por não ter curso superior. Não tenho formação acadêmica, sou autodidata. Fiz escola técnica profissionalizante, aprendi sapataria. Sou capaz de fazer um sapato.

ISTOÉ – O sr. se preocupa com a morte?
Ferreira Gullar

Quando a gente vai avançando em idade pensa que está mais perto de morrer. Eu me preocupo mais com a morte do meu gato (Gatinho, 16 anos) do que com a minha. Mas vejo a morte de forma tranqüila. Quem morre, acaba; é como se nunca tivesse existido. Por isso, digo que o sentido da vida são os outros. A morte é como um cochilo. O ruim é morrer sofrendo, ficar numa cama com dores, agulhadas. Aí é barra pesada.

ISTOÉ – O sr. acredita em Deus?
Ferreira Gullar

Nós inventamos Deus. Não existe. Mas a religião é fundamental. As pessoas precisam dela. Não é por acaso que a religião sobreviveu a todo o materialismo. Ela é fundadora e preservadora de valores sociais. O fato de eu não ser religioso não significa que eu menospreze ou diminua a importância da religião. Talvez a mais extraordinária criação do ser humano seja Deus.