Nos últimos dias, o cineasta
Nelson Pereira dos Santos tem
dividido seu tempo entre o
passado e o futuro. Do distante
ano de 1955, o filme Rio, 40 graus
saltou de volta para o seu cotidiano graças às comemorações do cinqüentenário da obra que inaugurou o Cinema Novo. Uma mostra no CCBB de São Paulo, com abertura no dia 6 de setembro, vai discutir a importância da película. Na seqüência, a Universidade Federal do Rio de Janeiro realizará, a partir de 19 de setembro, um ciclo de debates para rever a trajetória vitoriosa que começava ali. “Eu era um garoto de 26 anos e fiz um filme que ainda hoje desperta interesse. Essa é a maior satisfação”, diz o diretor. Nelson se emociona quando olha para trás, mas está mobilizado principalmente com o desafio que tem pela frente. Na terça-feira 16, anuncia o início das filmagens de Brasília, 18%, em festa na capital federal. Em tempos de mensalão, o título do novo filme remete inevitavelmente aos propinodutos políticos. Nelson desvia. “Os 18% do título são uma menção à umidade relativa do ar”, explica, com um sorriso irônico. A história conta a aventura de um médico legista que investiga a morte de uma mulher e acaba se apaixonando por ela. Será a última obra de ficção que dirigirá. “Depois, faço dois documentários sobre Tom Jobim e passo a escrever roteiros, vou atuar na retaguarda. O cinema é para os jovens”, afirma o diretor de 76 anos.

A paixão com que fala de seu novo filme, no entanto, acaba por contradizê-lo. O diretor explica que o cenário da história é a Brasília política, aquela das manchetes, pródiga em crises, fofocas, corrupção. O personagem principal é um médico legista, vivido por Carlos Alberto Ricelli, que investiga a morte de uma mulher tida como pivô de um escândalo de corrupção. Para que o personagem ficasse mais próximo da realidade, o diretor contou com a assessoria do conhecido legista Nelson Massini. Há políticos, um ministro, lobistas e até um motorista que relata ao espectador os bastidores da trama. Nelson garante que tanto este personagem – bem parecido com o motorista Eriberto França, que denunciou a ISTOÉ as tramóias de Fernando Collor – quanto os outros são ficcionais. E repete a tradicional alegação de que “qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência”. Também foi obra do acaso o fato de estar em Brasília rodando um filme com esse tema em pleno escândalo do mensalão, já que o roteiro estava pronto bem antes. Nelson, que militou por muitos anos no Partido Comunista Brasileiro, lamenta o desgaste do PT, a perda de referência política. “Fiquei surpreso. Mas, depois de tantos anos, a gente já não se deixa abater por essas coisas. Por outro lado, devemos pensar que, se estivéssemos nos anos 50, já teria acontecido um golpe de Estado. O importante é que se preserve o estado de direito.” Apesar do cenário e dos ingredientes políticos, Nelson garante que o filme é uma história de amor.

Crise pessoal – Seu envolvimento na criação de Brasília, 18% é total. Já a participação nas comemorações pelos 50 anos de seu primeiro filme resume-se a vasculhar os arquivos e a memória em busca de personagens e documentos que iluminem sua trajetória. Rio, 40 graus nasceu num momento de crise pessoal. Nelson tinha participado da produção de Balança mas não cai, película que foi interrompida por falta de recursos. Sem dinheiro, passou a morar no próprio estúdio de filmagem, próximo à favela do Jacarezinho, zona norte do Rio. A mulher com quem se casara voltou para São Paulo, sua terra natal. “Foi a fase mais difícil da minha vida”, recorda. A amizade com a equipe de produção, composta por moradores da favela, rendeu-lhe o convite para uma feijoada. Dessa maneira, conheceu o Jacarezinho por dentro. “Fui filar uma bóia”, diz, às gargalhadas. A realidade que viu ali era desconhecida para ele. “Eu compartilhava do preconceito em relação ao favelado. Naquela época, todos eles eram vistos como ladrões, batedores de carteira, como hoje são vistos como drogados ou traficantes”, admite. Nelson viu que o ambiente familiar deles era igual ao de qualquer família. “Quis fazer um filme para destruir esse preconceito.”

Em plena era JK, quando se respirava otimismo e se acreditava que o País era todo prosperidade, via-se pela primeira vez na tela a rotina difícil e os rostos negros dos moradores das favelas. Essa coragem rendeu ao filme três meses de embargo da censura, que o considerou subversivo. Naquele momento, o cinema brasileiro passava a ser algo mais que chanchadas ingênuas e arremedos de produções hollywoodianas. “O filme mostra os costumes da favela com uma certa ingenuidade. Mas é uma fotografia da sociedade carioca, na época a mais representativa da nossa sociedade”. Entre esta primeira história de ficção e a última, que começa a rodar, há uma filmografia que retratou, como nenhuma outra, a realidade brasileira. Quando Nelson Pereira dos Santos filmar a última cena de Brasília, 18% e abandonar o set, o Brasil, já tão dilapidado econômica e culturalmente, terá ficado ainda mais pobre.