i60859.jpg

A recém-lançada autobiografia Being a Scot (Ser um escocês), do ator Sean Connery, 78 anos, traz logo no início uma citação do diretor de cinema John Houston: "Eu desejo, por Deus, que Sean Connery se torne o rei da Escócia." É sugestivo porque foi com Houston que o ator filmou O homem que queria ser rei, em que ele e Michael Caine interpretam dois soldados expulsos do Exército inglês que viajam para a longínqua região do Kafiristão, na Índia, em busca de riquezas – e lá o personagem de Connery é consagrado rei pelo povo que jamais vira um homem branco na vida. O desenrolar da história, para quem não conhece, vale a pena conferir. No livro, Sir Sean Connery, que recebeu de bom grado esse título da rainha Elizabeth II em 2000 e é um dos nomes mais importantes do cinema mundial, comete algumas indiscrições sobre si mesmo, mas dedica boa parte das 300 páginas a elogiar a cultura escocesa e criticar os políticos da Inglaterra. Nacionalista e ferrenho defensor da independência da Escócia, Connery revela sua veemente verve política, o que levou o jornal inglês The Times a insinuar que o ator teria planos de se tornar, ele mesmo, rei da Escócia.

Connery vive hoje no paraíso fiscal das Bahamas e afirma que só voltará a morar em seu país quando ele for uma nação livre. O seu exílio voluntário, no entanto, teria motivos menos nobres: escapar dos impostos cobrados sobre a sua fortuna (avaliada em US$ 290 milhões) e fugir das cobranças da ex-mulher com quem travou brigas homéricas – inclusive com agressões físicas. Em suas memórias, escritas em parceria com o cineasta Murrey Grigor, ele se defende dizendo apenas que não deve um centavo ao Tesouro dos países onde trabalha. Ele se confessa um caipira incorrigível que quase abandonou a carreira artística pela dificuldade em ler os clássicos da literatura: afinal, abandonara os estudos aos 13 anos. O grande dilema do ator no início de sua carreira era como "parecer inteligente sendo tão ignorante". Numa de suas primeiras audições foi recusado pelo forte sotaque escocês.

Teve de estudar intensivamente para diminuí-lo e, além disso, recebeu uma lista de livros que deveria ler – autores que ele não conhecia sequer o nome, entre eles Marcel Proust, James Joyce, Henrik Ibsen, Constantin Stanislavski. Achou duro de engolir e, apaixonado por futebol que era aos 20 anos (até hoje torce pelo Manchester), pensou seriamente em abandonar a arte (ensaiava o musical South Pacific, em Londres, na época) e se dedicar ao esporte. Um tornozelo fraturado no musical, no entanto, o afastou dos campos e a carreira de ator engrenou. O futebol ele trocou pelo golfe, sua paixão até hoje. Connery revela um negócio megalomaníaco tratado com o empresário americano Donald Trump de construir um complexo de golfe ao norte da Escócia. Projeto que ainda não saiu do papel. Connery relata toda a sua infância e juventude numa região pobre da cidade de Edimburgo, mas nega a versão já divulgada de que foi uma criança que sofreu carências e dificuldades financeiras: "Nós não sabíamos que a vida poderia ser mais confortável, por isso vivíamos alegres como porcos." Trabalhou desde muito cedo, parte do tempo como entregador de leite, o que fazia conduzindo um cavalo numa carroça – uma aventura e tanto para um garoto de 11 anos. Entre os endereços de entrega estava a escola particular de elite Fettes College, onde mais tarde estudaria o ex-premiê inglês Tony Blair, desafeto de Connery que é lembrado e criticado diversas vezes na biografia. "Isso mostra que a pretensiosa escola também formou fracassados ilustres", escreve ele.

Quando o assunto é o cinema escocês, ele também se inflama contra o que chama de uma cultura que idolatra os perdedores e exagera o lado obscuro da vida humana. É a única crítica que faz ao país onde nasceu. "Trainspotting (protagonizado por Ewan McGregor) representa a moderna filmografia da Escócia, a história de um grupo de junkies que não têm nada a fazer. E hoje turistas vão a Leith só para conhecer a cidade onde foram feitas as filmagens. É revoltante", escreve Connery. Em outra passagem ele diz que no início a idéia de modelar o corpo, exigência que surgiu com os trabalhos em teatro, lhe parecia despropositada e pouco masculina. Compreensível para um típico machão proveniente das classes operárias e criado na zona rural. Superou a resistência inicial e logo ganhou um físico atlético invejável. Connery admite que a arte mudou a sua vida completamente: "Para ganhar algum dinheiro, passei até a posar como modelo em aulas de arte na Faculdade de Edimburgo."