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– Entrou-lhe alguma coisa pelos olhos?
– Sim, entrou-me um mar de leite.

O diálogo, que faz parte do romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, acontece depois que um dos protagonistas fi ca subitamente cego, enquanto aguarda no carro a abertura do farol de trânsito. O sinal abre e os motoristas, impedidos de seguir, buzinam, até que algumas pessoas se dão conta de que algo está errado com o condutor do veículo e vão lhe prestar socorro. O rapaz, em desespero, diz que está cego – tudo o que vê é uma luz branca e leitosa que ele descreve como um “mar de leite lhe invadindo os olhos”. É esse o início de uma grande epidemia de cegueira que afeta milhares de pessoas e se transforma numa calamidade mundial. É essa também a história de Cegueira, fi lme que estréia na sexta-feira 12 no Brasil, adaptado e dirigido pelo cineasta Fernando Meirelles.

O fi lme começa exatamente nessa cena. Em ritmo acelerado, vai recriando com forte impacto um cenário de horror em que casas, comércio, supermercados são abandonados, carros, aviões e trens fi cam desgovernados e seres humanos se engalfi nham para sobreviver em sua total escuridão – que é branca. E a imagem do “mar de leite” criada pelo escritor é um recurso que Meirelles utiliza ao longo do fi lme. À medida que mais e mais pessoas vão perdendo o sentido da visão, um tom branco leitoso invade a tela por uma fração de segundo, invadindo também a vista dos expectadores (que experimentam levemente o que se assiste na fi cção).

A protagonista da trama é a atriz americana Julianne Moore (As horas) e o personagem-narrador, o veterano Danny Glover (Máquina mortífera). Também está no elenco uma geração de brilhantes atores, como a brasileira Alice Braga (Cinturão vermelho), o mexicano Gael García Bernal (Diários de motocicleta) e o americano Mark Ruffalo (Brilho eterno de uma mente sem lembranças), que faz seu primeiro trabalho após enfrentar uma delicada cirurgia no cérebro para a retirada de um tumor. Ele interpreta o marido da personagem de Julianne, um médico oftalmologista que também perde a visão. Boa parte de Cegueira foi fi lmada em São Paulo. Ruas próximas ao Teatro Municipal, viaduto Santa Ifi gênia e o Anhangabaú serviram de cenário para os momentos fi nais. Os personagens vão caminhando por uma cidade que poderia ser Nova York ou qualquer outra metrópole do mundo e percebendo, embora cegos, a destruição que se fez em toda parte.

O caos que se instala no mundo diante da epidemia faz valer aquele ditado “Em terra de cego quem tem um olho é rei” – os que ainda enxergam e temem que a doença seja contagiosa se protegem transformando hospitais em locais de quarentena para isolar aqueles que perderam a visão e mantê-los presos, com abastecimento controlado de água e comida. As cores brancas e azuis dominam essas cenas e criam um clima de UTI em todos os ambientes. A fome, a ameaça e a vulnerabilidade fazem com que grupos travem guerras por alimentos, criando as seqüências mais violentas e dramáticas do fi lme. Foi justamente essa parte da história que Fernando Meirelles modifi cou depois da estréia em Cannes, em maio. As cenas de violência sexual chocaram tanto que geraram rejeição em parte da platéia, no entendimento de Meirelles, e por isso foram amenizadas. O cineasta foi antes a Saramago perguntar se ele achava que deveria modifi car o fi lme. O escritor foi enfático em sua negativa. Mesmo assim, o diretor optou por mudar, mostrando-se fl exível às opiniões dos espectadores. “Senti que o público rejeitaria o fi lme e não perceberia mais nada daí para a frente”, diz Meirelles. Na versão fi nal, essa passagem é muito forte, mas as sombras e os tons escuros não permitem que se enxergue a barbárie que está em curso.

Outra alteração ocorreu com as narrações em off que permeavam todo o fi lme e eram feitas pelo personagemnarrador interpretado por Danny Glover. Elas foram cortadas e reduzidas a duas ou três, o que parece ter sido uma boa iniciativa, já que se manteve um ritmo ágil, de tirar o fôlego, mas que nada tem da correria desenfreada de alguns fi lmes apocalípticos feitos em Hollywood. Meirelles, por sinal, faz questão de frisar que Cegueira não é um fi lme de estúdio americano, mas uma co-produção entre Canadá, Japão e Brasil. Outro mérito desse longa-metragem é ter preservado, de uma forma que é difícil de ver em adaptações cinematográfi cas de livros, a história e o sentido exato da obra original.