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ORIGINAL
Freyre em Apipucos, dois meses antes de morrer: ele se deixou “contagiar” pela realidade do País

Obra-prima da historiografia brasileira, o livro “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), foi descrito como “obsceno” e “pornográfico” quando de seu lançamento em 1933. A rejeição inicial deveu-se à linguagem adotada pelo autor, que aboliu o tom erudito e optou por um discurso franco, coloquial e aberto a expressões populares, gírias e “primitividades”, como ele próprio definiu. “O meu compromisso era com o mais real que o real”, dizia, citando o cineasta francês Jean Cocteau. Ao investigar os primórdios da história do País e desvelar o que chama de “intimidades submersas” da brasilidade, o autor criou uma interpretação original e revolucionária que é até hoje considerada fundamental para a compreensão dos paradoxos da nossa sociedade. Lançou esse clássico com pouco mais de 30 anos de idade. Meio século mais tarde, e com muitos livros importantes publicados, o então octogenário Freyre dedicou-se a redigir as suas memórias, e para isso muniu-se do mesmo olhar realista e desprovido de moralismos de ocasião. Tanta franqueza fez com que o inédito “De Menino a Homem – De Mais de Trinta e de Quarenta, de Sessenta e Mais Anos” (Global), que agora chega às livrarias, tenha permanecido 25 anos recolhido ao acervo da Fundação Gilberto Freyre, no Recife.

O novo livro revela um intelectual confessional, que emite sem fleuma, sempre na terceira pessoa, suas opiniões sobre religião, os percalços por bibliotecas brasileiras, a admiração pelos “ricos, eugênicos, belos” universitários de Stanford (onde estudou), as aventuras sexuais na Califórnia e outras passagens íntimas de sua mocidade. Em um trecho ele revela ter tido fantasias homossexuais e descreve sua viagem à Alemanha, devastada e empobrecida, onde esteve em visita à Universidade de Hamburgo coletando material para “Casa Grande & Senzala”. “Jovens ou adolescentes dos dois sexos oferecendo-se a turistas que os desejassem? Eu próprio, diante de lindo efebo louro, não resistira aos seus encantos. Deixara-me masturbar por ele, com Vicente do Rego Monteiro (pintor) servindo de tapume”. Como escreve a antropóloga Fátima Quintas, especialista na vida e na obra do autor, Freyre nunca temeu publicar os seus desejos, “ainda que venham a chocar os mais puritanos”.

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FORRÓ
Freyre e a mulher, Magdalena, no Recife (1941)

O escritor, que é o homenageado na Festa Literária de Paraty este ano, tinha grande interesse nas religiões e era um estudioso dos evangelhos. Avesso ao cerimonial católico, defendia uma relação de simplicidade com Deus. “Seria grotesco pretender ser casto nas palavras, elegante nas expressões, ao conversar com Deus. O certo é usar o termo obsceno, o pornográfico.”

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Leia abaixo trecho do livro “De Menino a Homem", de Gilberto Freire

Costumo dizer que, na minha vida de intelectual, não me tem faltado a presença inesperada, coincidente, oportuna, de um como Anjo da Guarda a abrir‑me ou a facilitar‑me caminhos decisivos. O convite para Stanford que sirva de exemplo. O velho Branner, ao reunir, nessa Universidade, a maior Brasiliana da época em qualquer parte dos Estados Unidos ou, talvez, do mundo, foi como se procedesse como um avô magnífico a favor de um neto como que quase esperado por ele. Nem no Brasil nem em Portugal, o futuro autor de Casa‑Grande & Senzala poderia ter encontrado tanto material de importância para a elaboração de um livro sobre o Brasil, dentro de perspectiva de todo nova ou inovadora do que fosse a análise e, da análise, se estendesse a uma interpretação, de uma nação. De uma nação, como o Brasil, ainda mal estudada, segundo novas perspectivas de análise social. De um passado nacional, ainda quase ignorado, segundo essas perspectivas. De possibilidades de uma civilização em começos de desenvolvimento independente com seus positivos e seus negativos, ainda por ser considerado nos seus equilíbrios de contrários.²³ E essa nova análise seguida de nova interpretação, por um nativo dessa nação que, à condição de nativo, juntava uma formação universitária – graduada e pós‑graduada – no estrangeiro que podia o ter afastado lamentavelmente da sua própria gente. Um experimento de todo novo. Pois o livro tinha que ser, no essencial, a própria autobiografia de um autor quase desconhecido na sua língua. Com estreia intelectual na língua inglesa em tese restritamente universitária.
Esse futuro livro, o autor começara a imaginá-lo em Lisboa, onde muito frequentou a Biblioteca Nacional e conviveu com dois sábios: João Lúcio de Azevedo²⁴ e o diretor do Museu Etnológico.²⁵
Chegou, em Lisboa, a rascunhar notas.
 

²³ No capítulo I de Casa‑grande & senzala, Gilberto Freyre define a noção de “antagonismos em equilíbrio”, que para ele é um traço constitutivo da gênese da sociedade brasileira: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho.
O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo” (Gilberto Freyre, Casa‑grande & senzala, 51ª edição, São Paulo, Global, 2006, p. 116).

²⁴Historiador português nascido em Sintra, em 1855, João Lúcio de Azevedo produziu uma obra relacionada à história religiosa e econômica. Foi autor de obras importantes, dentre elas O marquês de Pombal e sua época (1909), História do padre Vieira (1918‑1920), História dos cristãos‑novos portugueses (1921‑1922) e Épocas de Portugal econômico (1929). Faleceu emLisboa, em 1933.

²⁵ O diretor do Museu Etnológico de Lisboa aqui mencionado é João Leite de Vasconcelos.