A peça Santa Joana dos matadouros, de Bertolt Brecht, a música Apesar de você,
de Chico Buarque, o quadro Guernica, de Picasso, ou o filme Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman, são algumas das incontáveis provas de que a arte é uma atuação política. Pela função básica de instigar, pensar, politizar, denunciar e tematizar questões importantes, os artistas são destacados formadores de opinião. Acostumados a lidar com o público, observam a crise política do País e sugerem ações coletivas para resgatar valores como a honestidade e desglamourizar a política, que deve intermediar as lutas do cidadão para a transformação da sociedade. A classe artística passa por um período de “depressão” e “perplexidade”, motivo pelo qual muitos têm evitado dar entrevistas sobre questões políticas. Reunidos no auditório de ISTOÉ, no Rio de Janeiro, na quarta-feira 10, para debater os rumos do Brasil a partir da crise e olhar para o próprio umbigo, o músico Tom
Zé, o cineasta Sílvio Tendler, o ator e vereador (PPS-RJ) Stepan Nercessian, o músico Lobão e a atriz Camila Amado falaram que o atual momento também produzirá dividendos positivos, como a volta do interesse pela reflexão sobre
temas nacionais. Das classes A a Z.

O presidente Lula não é mais “uma paixão”, como disse Camila, ou herói nacional, como concordaram todos. “A ficha caiu”, resumiu Tendler. Na opinião de todos, Lula não tem sido um bom líder, não só pelos descuidos éticos, mas também pela inoperância. Presidente do Sindicato dos Artistas do Rio de Janeiro, Nercessian relativizou a importância histórica de Lula. “O que este rapaz fez? Ele não foi um Getúlio Vargas, não fez CSN, Petrobras, não deixa nenhuma obra”, comparou. Nenhum deles, no entanto, descartou a possibilidade de votar em Lula novamente para enfrentar um nome da direita. Tom Zé citou o educador Paulo Freire, do PT. “Ele ensina: de tanto ver agir o opressor, na hora em que o homem tem oportunidade de ser protagonista da História ele age igual ao opressor porque não conhece outro método. Lula é um homem que errou. Quem nunca errou? Pode ter humildade para recomeçar”, diz o músico. Mais importante que tentar antecipar o quadro das eleições de 2006, para os artistas, é criar mecanismos para que os corruptos de hoje não sejam substituídos pelos de amanhã. Lobão compara o jabá (propina da área cultural) ao mensalão e critica o País: “O Brasil não cria possibilidades para você poder ser o que é, o que quer, sendo correto.”

Lobão, cantor e compositor
O roqueiro Lobão faz uma comparação entre o dilema político e o da cultura. “O mensalão é para o Congresso Nacional o mesmo que o jabá (propina dada a programas de tevê e rádio para divulgar um disco) para a cultura. O princípio é o mesmo, o jeitinho brasileiro. E é uma prática vergonhosa que todos conhecem, mas negam.” A trajetória de ascensão e queda do PT também tem referência no mercado cultural. “É como o artista que quer ser independente e, também, fazer sucesso. Aí, tem de vender a alma para o diabo.” Sua conclusão aponta para o atavismo cultural: “O Brasil não cria possibilidades para você poder ser o que é, o que quer, sendo correto.”

O músico disse que não voltaria a fazer campanha para o PT e dificilmente daria seu voto para Lula em futuras eleições – a não ser que ele esteja disputando com um notório picareta. Mas critica também a atitude hipócrita de quem se comporta como se vivêssemos no paraíso da ética. “É muito esquizofrênico dizer que o que está acontecendo no poder é algo excluído da nossa cultura. A desonestidade é parte da nossa rotina e sabemos disso. Inclui a negociação com o guarda da esquina, com o hábito de furar fila, etc.” Ele critica os artistas que fazem campanha por dinheiro e os políticos que pagam fortunas a esses artistas. “O marketing político serve para impedir que a pessoa enxergue o candidato.” Ao admitir sua decepção com Lula, confessa um preconceito: “Não posso votar em quem gosta, de verdade, de Zezé di Camargo e Luciano.”
     

Tom Zé, cantor e compositor
Precisávamos mudar os conceitos para que a honestidade passasse a ser considerada uma coisa boa, que um filho ficasse orgulhoso porque tem um pai que trabalha o dia inteiro e é honesto e não porque ele tem um carro bacana. Para que uma pessoa que praticasse um ato de coragem, de bondade ou solidariedade tivesse a mesma fama que um Roberto Jefferson.” Essas palavras são do tropicalista baiano Tom Zé. Para ele, a base da crise política é a quebra de valores solidários. “A publicidade, o mais forte meio de persuasão e divulgação do egoísmo, pode ajudar a difundir as idéias de responsabilidade e uma vida moral sólida. Se providências semelhantes não forem acionadas, estaremos sempre repetindo essas crises: retiraremos os corruptos atuais e elegeremos outros. Daqui a alguns anos, como tem acontecido historicamente, estaremos em nova crise.”

Para manifestar seu repúdio, Tom Zé fez a música Neste Brasil corrupção, em parceria com Ana Carolina, no qual canta que “neste país de mandachuvas, cheios de mãos e luvas, tem sempre alguém se dando bem.” Segundo ele, “acabou a era do voto, pois a experiência brasileira mostra que o poder corrompe as melhores intenções. Agora, além de votar, é preciso fiscalizar o governo eleito.” Para o músico, “o que se praticava antes é muito parecido com o negócio do mensalão. Quando o governo queria aprovar algo importante, abria o Erário público.” A seu estilo irreverente, faz uma brincadeira: “Se eu fosse cínico, diria que conseguiram um meio mais barato de a República funcionar; basta, agora, um salariozinho.”

Stepan Nercessian, ator
Estudiosos da política econômica se dizem
surpresos com a resistência do governo, que
se mantém em pé, apesar de tantos abalos. Para
o ator, vereador (PPS-RJ) e presidente do Sindicato
dos Artistas, Stepan Nercessian, a explicação é a
boa constituição da sociedade brasileira. “O País
ainda não desabou porque tem pessoas de bem, honestas, que fazem o que é certo diariamente. São
os mais humildes, que buscam uma ética e tentam mostrar para o filho que é melhor trabalhar do que ser traficante.” Ele discorda que seja recente o sentimento de decepção com a esquerda: “A primeira grande decepção com um governo de esquerda foi com o Fernando Henrique Cardoso (PSDB), cuja biografia nos ensejava um governo de transformações sociais. E sob o comando de FHC aconteceram escândalos horrorosos que não foram sequer investigados, como a atuação do Sérgio Mota (ministro das Comunicações, já falecido) junto aos patrocínios culturais.”

Da mesma forma, ele não poupa o governo atual: “Se o Lula acabar amanhã, vamos dizer: Que pena! Mas não deixará saudade porque não fez nada. O que eu realmente lamento é morar num país em que se é obrigado a escolher o menos ruim.” Confessando-se, “infelizmente”, pessimista, ele diz que o bolsão de escândalos não atinge somente a esquerda brasileira: “Envolve centro, direita, tudo. A classe artística foi se afastando por isso. Mas tenho certeza de que nós, como a maioria do povo brasileiro, continuamos na torcida para que o Lula saia dessa.”
 
 
Camila Amado, atriz
Camila Amado está completando, este ano,
meio século de vida dedicada à arte, em
especial ao teatro. Hoje, ela trabalha mais
como professora de interpretação do que
atuando e um dos motivos, segundo disse,
é a recusa em aderir ao esquema de patrocínio cultural que passa, muitas vezes, por estatais.
“Se você quiser ser livre, tem de fazer outra coisa.
Eu dou aulas. Ou ficar de pires na mão atrás de patrocínio. Há uma inversão: antigamente, trabalhávamos primeiro para, depois, ganhar
o dinheiro. Hoje, para trabalhar, eu tenho que
ter dinheiro”, diz. Para a atriz, o envolvimento dos artistas com os patrocínios do Estado pode comprometer a isenção crítica, mas não de todos. O momento seria de reflexão profunda. “Temos de refletir sobre nós e o país que construímos. Todos, sem exceção, estamos inseridos nessa sociedade não-ética que tanto criticamos.”

A crise, segundo a atriz, nos joga em um “processo de maturação” que fatalmente desemboca numa depressão. “Vamos ter de agüentar nossa identidade, ver que temos uma terra maravilhosa, somos abençoados por Deus, mas nós não prestamos”, afirma. Em um desabafo sincero, ela fala do sentimento forte da Nação por Lula. “Era um caso de paixão. E paixão não dá para requentar.” Mas ela não descarta a possibilidade de repetir o voto: “Se a fala dele for verdadeira, comovente, humana, eu voto de novo no Lula. Mas eu voto diferente, não mais com paixão. Acho que uma pessoa que já errou, já foi humilhada, tem mais capacidade de aceitação. E eu quero um líder, um diretor de cena, e não um herói.”
 

Sílvio Tendler, cineasta
Alguns dos mais importantes documentários
sobre o Brasil levam a assinatura do cineasta
Sílvio Tendler, como Jango, Os anos JK e Dr.
Getúlio, últimos momentos. A diferença, para ele,
entre os dramas antigos e os atuais está na
inserção da política na “sociedade-espetáculo” –
termo criado pelo francês Guy Debord.

“A política tem de sair da sociedade-espetáculo. Seu papel é intermediar as lutas do cidadão para a transformação da sociedade, e não fazer marketing.” Tendler usa a linguagem do cinema para falar do recolhimento da classe artística. “Fomos criados num mundo de mocinho e bandido, de antagonistas – como a ditadura. Agora, nos vemos num mundo só de bandidos. Lutamos para tentar construir um outro modelo de governo e ele ficou igual aos outros. E é complicado ver que os acusadores de hoje são os acusados de ontem em outros escândalos. É difícil conviver com isso.”

Ele cita Bertolt Brecht para criticar a busca de um salvador da pátria a cada eleição: “Infeliz do povo que precisa de heróis.” E conclui: “O cidadão precisa se sentir responsável também e não delegar tudo de quatro em quatro anos.” Após frisar que “ética não é problema político, é um bem essencial”, ele lembra que não é só o PT que está em debate. “O PSDB também está tomando lama. A sobrevida do PT vai depender de sua capacidade de se rearticular.” Tendler não sabe em quem votará em 2006, pois isso dependerá das opções de candidatos, mas uma coisa já definiu: “Eu gostaria de votar contra São Paulo controlando a economia do País – não sei se a revista vai publicar isso.”