Elas se chamam Maria. Não satisfeitas, algumas carregam do Céu como
segundo nome. Às vezes, são as Joanas, Franciscas, Luzias, Terezinhas e
também Severinas. Habitam, com força e fé, o mesmo universo. Dividem quase sempre a mesma realidade miserável e quente do sertão nordestino. Elas,
enquanto o País assiste estarrecido ao dramático espetáculo de corrupção,
andam na contramão da crise e mostram que ser honesto é o melhor remédio
para combater a miséria e a indigência. Essas mulheres, a maioria sem marido,
mas com muitos filhos –, vivem em Pombal, cidade do sertão da Paraíba situada
a 400 quilômetros de João Pessoa. De carona num pau-de-arara ou a pé, essas chefes de família saíram de suas casas para devolver o cartão do Bolsa Família,
que lhes conferia mensalmente uma renda média de R$ 50. O combustível para
um ato tão nobre em tempos como os de hoje foi a solidariedade.

Essas mulheres, que vivem numa espécie de família cunhada pelo sobrenome honestidade, conhecem muito bem o que é precisão, como dizem lá no sertão. As marcas dos tempos difíceis estão nas rugas, estão no olhar. Mas o sorriso é de menina que faz gosto ao pai – ele mesmo, o Eterno. Elas, todas elas, são tementes e muito agradecidas ao Altíssimo, por terem conseguido se aposentar como trabalhadoras rurais ou aumentar a renda com a venda de doces caseiros, ou pelo tão sonhado emprego – coisa rara em Pombal – obtido pelo companheiro. Devolver os benefícios, simplificados por elas, com toda a propriedade que a vida lhes concedeu, de Fome Zero, era mais que uma obrigação. Era questão de consciência e de amor ao próximo, o vizinho que mora ao lado e ainda não conseguiu ser beneficiado pelo projeto. Essas Marias, são mais de 211 mulheres que atenderam, de fevereiro ao mês passado, ao apelo da Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social, que está finalizando a atualização cadastral para os benefícios de transferência de renda. Muitas delas, apesar da aposentadoria, ainda estariam enquadradas no programa. Um salário de R$ 300 para um domicílio com quatro pessoas, por exemplo, proporciona uma renda per capta inferior a R$ 100, o máximo admitido pelo Bolsa Família para receber o benefício.

Fé na vida – “Quando fiz o Fome Zero não tinha nada, mas este ano consegui me aposentar. Hoje me considero uma mulher rica. Ganho R$ 300. Mas olhava em volta e aquilo me doía. Tem tanta gente com muita precisão e sem condição para se manter”, conta Francisca Joana da Silva, 65 anos. Com menos de 30% de visão, Joana é daquelas sertanejas que não perdem a mania de ter fé na vida e, principalmente, em si mesma. Até então, ela vivia com uma pequena ajuda do único filho, Ananias, 31 anos. Hoje conhecido como Jackson Travesso, ele partiu para Catulé do Rocha, município próximo, a fim de trabalhar numa rádio e com isso sustentar a mulher e três crianças, a mais velha com sete anos. Antes do benefício e da aposentadoria, Joana ia levando a vida de roça em roça. E, quando ainda tinha marido e visão, conseguiu manter três filhos, dois de criação, e dar sustento ao irmão, Antônio, hoje com 50 anos. “Na época que minha mãe morreu, ele, que é de criação, tinha só dois anos. Com a aposentadoria, continuo ajudando ele, que não tem emprego, e seus dois filhos, Leonardo, dez, e Leandro, 13 anos. Foi de todo o coração que devolvi o cartão do Fome Zero porque sei que será passado para outro que está precisando. Quando posso, ainda arrumo uma terrinha emprestada para plantar meu feijão. Trabalho me dá saúde e assim posso ajudar aqueles que precisam”, sorri Joana, filha de Pombal, a mesma cidade em que nasceu o economista e um dos brasileiros mais importantes, Celso Furtado. Em cantões mais longínquos do município, a história se repete.

Sem troca – Como uma onda, a devolução do benefício era entendida pela população. Muitos acham que era preciso dividir o bolo, e não surrupiá-lo como aconteceu em inúmeras prefeituras do interior do País, nas quais o Bolsa Família virou moeda política de administradores pouco comprometidos com geração de emprego e renda. Em Arruda Câmara, na zona rural, Neusa Mateus dos Santos Gomes seguiu os passos de Joana e devolveu o benefício de R$ 50 depois de premiada pela tão sonhada aposentadoria. Ela criou seis filhos e hoje, aos 59 anos, tem que dar conta dos netos.

Neusa mora de favor numa casa com duas filhas, duas netas e as imagens de São José, Maria e Jesus penduradas na parede. Abandonada pelo marido há 16 anos, Neusa cobra “água e mais condição” dos políticos da região. Enquanto passa o café, ela critica os envolvidos no mensalão. Neusa não tem televisão, só rádio e não sabe bem do que se trata, mas sai na defesa do presidente. “Ficam falando do Lula, mas se não fosse ele o que seria da gente sem esse Fome Zero? Assim que me aposentei entreguei o cartão para que minha filha, a Lucicleide, que é muda, com duas filhas e sem marido, como eu, pudesse receber. Não pode dois cartões na mesma casa e eu consegui me aposentar. Aqui não tem emprego. Ela ajuda a tia-avó Severina Gadelha, que tem 77 anos e é doente. Aqui, se as pessoas não se ajudarem, ninguém ajuda”, afirma.

A dificuldade de se conseguir emprego em Pombal é grande. Não há indústria
e o êxodo na agricultura é tamanho que a população urbana é três vezes maior
que a rural. O município, que na década de 70 foi o maior produtor de algodão
da Paraíba, vive do leite e principalmente do repasse do Fundo de Participação
dos Municípios. Não há cultura de cobrança de IPTU e a receita é quase
inexistente. O maior gerador de empregos é a prefeitura, que tem 770 servidores
e um gasto de R$ 300 mil com a folha de pagamento, considerada uma das mais enxutas do Estado. Foram mais de 20 anos sem crescimento algum, cenário que começou a ser mudado nos últimos nove anos, com gestões administrativas descoladas do coronelismo reinante na região.

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Pouco emprego – Mas os que possuem alguma qualificação conseguem romper o cerco, como aconteceu com o marido de Gilvânia Monteiro Lacerda, 34 anos. Gilvânia entregou o benefício que recebia há menos de um ano, depois que ele foi trabalhar numa padaria. Com um salário mínimo e morando com os pais – Teresinha, que é aposentada, e Frederico –, Gilvânia e o marido conseguem manter as duas filhas, uma de nove e outra de três anos.

“Se a gente que precisa não tiver consciência, quem vai ter? Depois de três meses doente, meu marido conseguiu trabalho. Minha mãe, embora meu pai não tenha emprego porque sofre da coluna, nos ajuda. É como uma corrente. Acho que estou ajudando a outros devolvendo um benefício que graças a Deus existe, mas que, no momento, não preciso mais”, acredita.

Maria do Céu, 66 anos, reza na mesma cartilha
de Gilvânia. Ela abriu mão dos R$ 50 depois que
ficou viúva e passou a receber pensão. “Eu não tinha nada e agora recebo dois salários. E teve gente que me disse que eu era boba de devolver o benefício. Diziam que o governo era rico, que não precisava desse tantinho. Sei que o governo é rico, mas a Nação é grande e tem muita gente necessitada. A cidade é pobre e a situação aqui é triste. Se não fossem os aposentados nas famílias, a situação seria de calamidade”, avalia.

Pombal está orgulhosa de suas Marias, Joanas, Franciscas e Severinas. Elas são o assunto da cidade. A comoção e o exemplo de honestidade solidária foram tão fortes que teve gente, conta a secretária de Trabalho e Ação Social, Yasnnaia Pollyana, que chegou à secretaria querendo devolver o benefício, embora não tivesse como sobreviver sem ele. O prefeito Jairo Vieira Feitosa (PT) estava disposto a fazer uma homenagem a elas. Mas já passavam de 211. Ele fez as contas e concluiu que ficaria caro e incompatível gastos com comendas diante de um ato como esse. Preferiu mandar uma carta de agradecimento e reconhecimento. Sem medo de ser honesta, o que elas querem humildemente é que suas histórias sirvam de exemplo para os seus. E a nós brasileiros, que esse espetáculo de consciência sirva de lição, que ruborizem os homens públicos – envolvidos direta ou indiretamente num dos maiores escândalos políticos já vivenciados pela Nação –, que pensam que dinheiro público é a casa da mãe Joana.


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