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ARTE RELACIONAL
Lygia Clark em sessão terapêutica que tardou a ser reconhecida como arte

A arte brasileira nunca esteve tão em alta no contexto internacional. Do jeito que as coisas vão, logo o brasileiro terá que viajar se quiser ver
a arte feita em seu país. Especialmente se essa arte for produzida por artistas já falecidos, já que aqueles que detêm os direitos de espólios nem sempre facilitam sua difusão. A retirada da obra “Caminhando”, de Lygia Clark (1920-1988), do conjunto de obras que a partir de 25 de setembro irão integrar a 29ª Bienal de São Paulo, ilustra bem a problemática.

“Lygia Clark para nós é um emblema, é uma inventora”, diz Agnaldo Farias, curador da 29ª Bienal. “Ela inventou algo chamado ‘Caminhando’, que é um exercício democrático, acessível a qualquer pessoa.” A obra é uma fita de Moebius e acontece na medida em que o público recorta o papel. Foi criada em 1963, quando Lygia dizia que a arte não deveria só ser contemplada com olhos, mas traduzida em experiências. Mas um pacote de condições impostas pelos responsáveis por seu espólio – a proibição de que determinados críticos escrevessem sobre sua obra no catálogo, a garantia de que as bobinas de papel seriam repostas exclusivamente por courriers enviados do Rio de Janeiro e a cobrança de R$ 45 mil – levou a curadoria da Bienal a desistir da obra. “Tínhamos o dinheiro, mas decidimos que não poderíamos chegar a esse nível de concessão. Isso era trair a memória da Lygia Clark”, afirma Farias. “O interesse argentário sobrepõe-se a um interesse cultural e familiares estão contribuindo para a desaparição dessas obras. Comenta-se menos Lygia Clark.”

A atual Lei de Direitos Autorais, em vigor desde 1998, prevê que os direitos se estendam à família por 70 anos após a morte do artista. Cabe aos herdeiros o zelo pela integridade física da obra, além de sua difusão. Na falta de uma política cultural de preservação da arte brasileira, a atuação dos familiares torna-se fundamental. “O herdeiro tem o direito de fazer o que quiser com a verba arrecadada através dos direitos autorais. É um direito constitucional. A família de Lygia achou por bem ceder a uma associação cultural que preserva todo o acervo documental da artista para dar acesso a quaisquer pessoas que tenham interesse em sua arte”, afirma Alessandra Clark, neta da artista.

“De fato, o Estado está desmoralizado, os nossos museus não colecionam nada, ou pouquíssimo, e as artes visuais deste país são mantidas invisíveis. Temos que agradecer a essas famílias, e seu direito é legítimo. Mas estamos discutindo os excessos”, continua Farias. A associação O Mundo de Lygia Clark inclui entre suas missões a propagação das ideias da artista. Mas algo deve estar errado, já que sobram relatos de exposições e publicações impedidas de realização, por intervenção da associação. O caso mais drástico e recente envolve a curadora Suely Rolnik, pesquisadora reconhecida internacionalmente como uma das maiores expertises na obra de Lygia. Paradoxalmente, ela é uma das críticas impedidas de escrever sobre a obra de Lygia no catálogo da Bienal.

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AUSÊNCIA
Repórter de Istoé reencena “Caminhando”, retirada da lista da Bienal

Suely concebeu um arquivo de 65 entrevistas com pessoas que vivenciaram as sessões com objetos relacionais, na fase em que a artista se voltou para experiências terapêuticas. Com depoimentos de músicos como Caetano Veloso e Jards Macalé, o arquivo ganhou reconhecimento e diversas exposições na Europa. Mas, quando a exposição foi montada no Centro Cultural BNB, em Fortaleza, em maio, Suely recebeu uma notificação de O Mundo de Lygia Clark para a retirada do nome da artista do título da exposição, de textos e catálogos. Para que o nome constasse do material gráfico, a associação cobrava R$ 40 mil.

“Sem consulta prévia, o banco decidiu retirar todos os textos. Meu trabalho foi mutilado e os filmes não têm sequer um frame de imagem de Lygia”, afirma Suely, que apresentará a exposição dos arquivos, em agosto próximo, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), no Recife. Sem a exclusão do nome, a mostra “Lygia Clark: do Objeto ao Acontecimento” será inaugurada com um simpósio sobre direitos autorais, promovido pelo Ministério da Cultura.

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“Estamos propondo uma reforma da Lei de Direitos Autorais para garantir o direito do autor e harmonizá-lo com o direito de acesso por parte da população”, afirma Juca Ferreira, ministro da Cultura. “Essa harmonização no Brasil é complicada, porque os direitos vão para a família do autor e ela pode fazer o que quiser.” Segundo as novas regras, em consulta pública no site do MinC até 30 de julho, passa a ser permitida a reprodução gratuita de obras de artes visuais para fins de publicidade relacionada à exposição pública, sem a necessidade da autorização dos titulares dos direitos das imagens das obras, desde que liberada pelos proprietários dos suportes em que a obra se materializa.

“É muito fácil dizer que se está realizando um projeto em homenagem a um artista”, argumenta Alessandra Clark. “Pensamos que será difícil o governo detectar o que é realmente didático ou tem fins comerciais.” Mas, se a nova lei tivesse instrumentos que facilitassem a percepção de fins educativos, isso certamente teria favorecido a mostra em Fortaleza e a inclusão de Lygia na Bienal de São Paulo. “A Bienal está atingindo 40 mil professores da rede pública, seu efeito multiplicador é enorme. O patrimônio de um país é isto: é absolutamente ridículo que o Brasil continue, nessa altura do campeonato, sendo exportador de petróleo e minério. Temos que exportar nossa inteligência”, diz Farias.

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ARQUIVOS
Caetano Veloso narra experiência com terapia de Lygia Clark em projeto de Suely Rolnik

A nova lei será bem-vinda se vier a estimular a produção de conhecimento, gerada em casos como a parceria entre a editora Cosac Naify e a Fundação Iberê Camargo, que desde 2003 publicou cinco livros que mapeiam a obra do artista gaúcho. “É preciso criar uma indústria cultural forte. O mundo inteiro está interessado em nossa cultura e não podemos cometer o mesmo erro do futebol. Temos os melhores jogadores, mas não temos competência para mantê-los. Se não formos capazes de regulamentar um direito, a produção brasileira se tornará inviável”, afirma o ministro Juca Ferreira.