O depoimento de nove horas do publicitário baiano Duda Mendonça à CPI dos Correios, na quinta-feira 11, produziu o seu mais bombástico resultado: tirou o presidente Lula da toca. No final da manhã de sexta-feira, numa reunião formal do Ministério na Granja do Torto – demonstrando a tensão na voz e nos olhares nervosos para o teto –, Lula falou o mínimo que o País esperava dele: “Temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas”, disse, sem citar os nomes que o País já conhece. “Estou tão ou mais indignado do que qualquer brasileiro”, confessou Lula, medindo as palavras: “Eu me sinto traído pelas práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento.” O presidente destacou a importância de preservar a economia: “É obrigação do governo, da oposição, dos empresários, dos trabalhadores e de toda a sociedade brasileira não permitir que esta crise política possa trazer problemas para a economia.” Lula tentava ganhar fôlego, reforçando sua blindagem duramente atingida pelo depoimento de Duda, que ameaça transformar em pó 25 anos de história do PT e dois anos e meio do governo Lula. O mesmo gênio do marketing político que dourou o sonho de milhões de brasileiros de ver um operário subir a rampa do Palácio do Planalto pode ter desatado, 32 meses depois – num agosto trágico como tantos outros na história da República –, o maior pesadelo de Lula.

Havia uma expectativa muito grande quanto ao tom do discurso do presidente. Afinal, foi a primeira vez que ele falou sobre a crise em um pronunciamento na tevê. Para o cientista político Carlos Alberto de Melo, professor de sociologia e política do IBMEC São Paulo, o discurso teve efeito positivo, já que ele se posicionou como um governante consciente da crise política e acabou acalmando o mercado. “O discurso do presidente Lula cumpriu o script que se esperava de um ator político racional. Ele não será, daqui por diante, um presidente forte, como de resto já não está sendo. Mas não será tão fraco que sua queda seja a solução de problemas. Deixou claro o que seria seu eventual impeachment, o agravamento dos problemas nacionais. Sem Lula, teríamos José Alencar ou Severino Cavalcanti. Provas cabais de que, no Brasil, poço não tem fundo mesmo”, opinou Melo.

O pronunciamento de Lula veio no dia seguinte ao depoimento de Duda na CPI.
O publicitário apareceu lá de surpresa, para falar ao lado de sua sócia, Zilmar Fernandes. Ele estava emocionado e insone. Afinal, na quarta-feira 10 – quando completou 61 anos – depôs até as 4h da madrugada na Polícia Federal em Salvador. Em seguida, viajou para Brasília. Após dormir duas horas, Duda
irrompeu na CPI com a força demolidora de um furacão: “Vim aqui para abrir
meu coração.” Com a honestidade e a convicção que não se viu em nenhum
outro depoente, ele desfiou a teia de negócios escusos, empresas de fachada,
caixa 2, dinheiro clandestino e ilegalidades em que se afundaram a cúpula do
PT, ministros e amigos do presidente.

Dinheiro vivo – O País prendeu a respiração enquanto Duda revelava a temerária engenharia da dupla Delúbio Soares-Marcos Valério para pagar as contas de campanha do PT com dinheiro de uma offshore criada no Exterior à margem da lei. Duda revelou que, ao cobrar uma dívida de R$ 15 milhões do PT, Delúbio mandou que ele resolvesse o problema com Marcos Valério. Zilmar contou que foi à agência SMP&B para receber uma bolada de R$ 300 mil e, em vez do usual cheque administrativo, saiu de lá com um pacote em dinheiro vivo. A cena repetiu-se mais duas vezes. Para receber o resto, Duda diz que seguiu instruções de Valério para abrir uma conta no Exterior – e, com a ajuda do BankBoston, criou a offshore Dusseldord, nas Bahamas, onde o valerioduto desovou cerca de R$ 10 milhões. Este dinheiro marginal irrigou as contas de campanha do PT – nas eleições municipais de 2004 e na eleição presidencial de 2002. O relato explosivo de Duda se somou à explicação pouco convincente do PT para justificar o empréstimo de R$ 29,4 mil que apareceu nas contas do partido, em nome de Lula. Suspeita-se que a fatura tenha sido paga pelo valerioduto. O Planalto negou. Duas semanas depois, o amigo de Lula e presidente do Sebrae, Paulo Okamoto, alegou que eram despesas de Lula quando ainda presidia o PT e garantiu que pagou as despesas do próprio bolso, sem avisar nada ao presidente. Mas o ministro Jaques Wagner negou tudo, dizendo que Lula nada devia ao partido. A história continua sem explicação.

Chocado, o PT foi às lágrimas no plenário da Câmara. Vinte e um deputados da ala esquerda criaram um bloco dissidente e anunciaram seu desligamento da bancada, enquanto meia dúzia chorava abertamente. O espetáculo de dor atingiu até o líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante: “Se os responsáveis por tudo isso não forem punidos, vou tomar outro caminho na vida. Minha tristeza é que, em dois anos e meio, nunca me contaram nada disso que estou ouvindo aqui.”

Articulações – Diante do estupor que imobilizava o PT, chocado com o que ouvia, a oposição começava a se movimentar com a cautela que a crise recomenda. “Para ter impeachment, é preciso ter certeza jurídica e decisão política”, refletia o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, que acompanhou os estertores do governo Collor como coordenador político do Planalto. “O depoimento de Duda pode nos dar as evidências jurídicas que faltavam”, dizia o líder pefelista, senador José Agripino Maia: “Não há dúvida agora de que o dinheiro de Marcos Valério serviu para pagar a campanha de Lula. Dinheiro não tem carimbo.” Reuniões tensas ocuparam a agenda de caciques oposicionistas, como Marco Maciel (PFL-PE) e Tasso Jereissati (PSDB-CE), que interrompeu a conversa com Bornhausen e Agripino para um longo telefonema ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A oposição acha que o crime eleitoral embutido no relato de Duda pode inviabilizar
a chapa eleita em 2002 – o que apearia do poder, ao mesmo tempo, Lula e o vice José Alencar, do PL. Nesse caso, o sucessor constitucional seria o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), responsável por convocar
uma eleição indireta em 30 dias. Mas Severino também pode ser tragado, mais adiante, no tsunami do mensalão: os principais líderes de seu partido – José Janene, Pedro Correa e Pedro Henry – estão na lista de pagamentos do Banco Rural. “E se aparecer um cheque em nome de Severino?”, treme um dos líderes da oposição. Nesse caso, o bastão do poder provisório cairia nas mãos do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Por tudo isso, FHC e seus aliados da oposição vão aprofundar a consulta aos juristas e esperar o fim de semana para avaliar melhor a reação de Lula e da opinião pública. Na sexta-feira
12, uma nova pesquisa Datafolha já apresentava o que, meses atrás, seria uma hipótese impensável: o prefeito José Serra (48%) derrotaria Lula (39%). Pior
ainda, 29% dos pesquisados já defendem claramente o impeachment do
presidente. Quase um terço dos brasileiros já não quer Lula lá.