A acusação de envolvimento da Abin em escutas ilegais abriu um conflito entre os Três Poderes. No domingo 31, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, cobrou explicações do governo sobre o “descontrole estatal” no uso de grampos. “Nesse caso, o próprio presidente da República é chamado às falas, ele precisa tomar providências”, desafiou Mendes. Na manhã da segunda-feira 1º, o ministro descarregou sua ira, em reunião com o próprio Lula. Mendes disse ao presidente que a gestão de Paulo Lacerda na Polícia Federal “foi de abusos” e “práticas autoritárias”. E acusou a PF de pressionar juízes a “forçar” a prisão de desembargadores. O ministro voltou a reclamar da divulgação do nome de um homônimo seu envolvido com a quadrilha do empresário Zuleido Veras, da Gautama. “Criaram um tal de Gilmar como se fosse eu”, lembrou. “Essas práticas estão no DNA dessa gente.”

Lula reclamou que até seu irmão, Genival Inácio da Silva, o Vavá, teve conversas gravadas pela PF e, diante do ultimato do presidente do Supremo, prometeu tomar providências. Num dia de muitas reuniões, na mesma segunda-feira ele acabou afastando Paulo Lacerda da Abin pelo tempo que durarem as investigações sobre o caso. Mas apenas 48 horas depois, na quartafeira 3, o presidente da República abriu mão de discursar durante a posse do novo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Cesar Asfor Rocha, num sinal político do seu incômodo com a pressão sofrida. Na posse de Rocha, a condenação dos grampos foi a tônica dos oradores. “Nada deve se sobrepor a prontas intervenções para impedir que práticas ilegais de escutas telefônicas clandestinas ponham em risco o equilíbrio institucional”, alertou Rocha, para visível mal-estar de Lula.

Na verdade, o presidente passou maus momentos durante a crise do grampo. No início da segunda-feira 1º, por exemplo, outra comitiva de peso foi bater às portas do terceiro andar do Palácio do Planalto. Desta vez, tratava-se do presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB), na companhia dos senadores Demóstenes Torres (DEM) e de Tião Viana (PT). Supostamente grampeados no esquema ilegal, os três senadores demonstraram a irritação do Legislativo com o Executivo. Lula admitiu o risco de “descontrole” das escutas telefônicas no País. Até ali, o presidente da República não abria mão de seu chefe de inteligência. “Acredito no Lacerda e o apóio, não vou retirá-lo”, insistia. Mas as fortes emoções estavam guardadas para a tarde de segunda-feira. Lula chamou em seu gabinete os ministros da Defesa, Nelson Jobim, da Comunicação, Franklin Martins, e o chefe do Gabinete Institucional da Presidência, general Jorge Félix. A reunião foi marcada por um tenso bate-boca entre Jobim e Félix. Jobim acusou a Abin de fazer escutas e Félix rebateu cada frase, na versão de fontes credenciadas do Palácio do Planalto. Eis um trecho da discussão:

Jobim – A Abin tem equipamentos para fazer escuta. A Abin comprou equipamentos antigrampo em 2006. Dá para fazer grampo.
Félix – O Exército comprou o mesmo equipamento. Então, o Exército faz escutas também?
Jobim – A Abin não pode fazer parceria com outros órgãos.
Félix – Toda atividade da polícia tem inteligência.
Jobim – Mas a Abin não pode.
Félix – O Ibama pode, o Coaf pode, por que a Abin não pode? O presidente da República assinou decreto que amplia as atribuições da Abin e o senhor, ministro, assinou o decreto.

O ministro Franklin também entrou na discussão, fi cando a favor de Lacerda. Ele relembrou a postura de Jobim no caso Sivam, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, Jobim era ministro da Justiça e o delegado Paulo Chelotti, irmão do diretor da PF, Vicente Chelotti, subordinado a Jobim, foi acusado de grampear as conversas do chefe do Cerimonial da Presidência, embaixador Júlio César Gomes dos Santos. O grampo acabou pegando diálogos do embaixador com o presidente Fernando Henrique. “O senhor não afastou o Chelotti no Caso Sivam”, argumentou Martins. Mas Jobim não recuou e repetiu que era preciso oferecer uma cabeça para conter a ira do STF. Ao fi nal do bate-boca, Lula, sob pressão do Judiciário e do Congresso, deixou-se convencer pela opinião de Jobim e determinou o afastamento de Lacerda do comando da Abin até a conclusão do inquérito da PF para apurar os grampos ilegais.

Lacerda culpa Jobim pela punição que sofreu. “O ministro Nelson Jobim pesou a mão”, reclamou com um amigo, sugerindo que o ministro da Defesa teria atendido a pedido de um terceiro. “É bom lembrar que alguns dias antes o ministro Jobim teve reunião com o José Dirceu”, disse Lacerda, um dos maiores inimigos do ex-ministro Dirceu. Quando assumiu a direção da PF, Lacerda jogou no lixo os memorandos que Dirceu enviava da Casa Civil para impor nomeações de superintendentes da PF. O delegado não cedeu às pressões do ex-ministro para aparelhar a instituição com delegados simpatizantes do PT. Informado de que Lacerda o acusa de ter agido a pedido de Dirceu, Jobim não quis falar sobre o assunto.

Lacerda nega que tenha mandado fazer grampo ilegal. Ele se diz vítima de “armação de gente forte” e tem quase certeza de que o banqueiro Daniel Dantas estaria por trás do tal plano. “Tudo está direcionado para desqualifi car a Operação Satiagraha. Não tenho dúvida nenhuma de que o Daniel Dantas está envolvido”, comentou o delegado com assessores. Primeiro, disse Lacerda, desqualifi caram o delegado Protógenes Queiroz, que conduziu a operação, depois foi a vez da Abin. “Agora, a bola da vez é a PF”, disse Lacerda. Do ponto de vista institucional, a crise entre os Poderes deverá ser superada com o esclarecimento do caso. Mas só o tempo dirá se as mágoas de agora vão repercutir em ações futuras.

A Câmara versus o STF
O deputado Ibsen Pinheiro (PMDBRS) tem uma dívida de gratidão com o Judiciário. Cassado em 1994, sob a acusação de envolvimento com a quadrilha dos “anões do orçamento”, Ibsen foi absolvido, cinco anos depois, pelo Supremo por unanimidade. Isso não o impediu de subir à tribuna na quarta-feira 3, para denunciar as pressões do Judiciário sobre o Legislativo. Ibsen revelou que o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, recebera na véspera um ofi cio do STF que determinava um prazo de 18 meses para aprovar qualquer lei. Chinaglia respondeu que a Câmara age no interesse da sociedade e nos termos da Constituição. “Pior Legislativo é aquele que é rápido e unânime. Quando poucos fazem leis, fazem leis para poucos”, esbravejou Ibsen. “Em termos de valentia e coragem ninguém nos dará lições. Pelo contrário. Aqui o regime militar morreu de morte matada. Quando a lei mandava votar em Maluf, o Parlamento reagiu e votou em Tancredo”, lembrou o deputado, debaixo de aplausos. O episódio mostrou que Ibsen não é voz isolada contra o Judiciário. Ele falou por seus pares.