Especialista em adolescentes, aginecologista diz que a desilusãocom a crise política faz com queeles se cuidem menos sexualmente

Eleita como uma das mil mulheres
que concorrerão ao Prêmio Nobel
da Paz coletivo a ser concedido este
ano, a ginecologista Albertina Duarte Takeuti é realmente uma mulher de mil tarefas. Coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente da Secretaria Estadual da Saúde do Estado de São Paulo desde 1986 e da Casa do Adolescente na capital paulista há dez anos, assumiu em julho a presidência do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Também já esteve à frente, entre 2000 e 2002, do Programa de Saúde da Mulher e atende no ambulatório de ginecologia do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Com 35 anos de profissão, ela sai freqüentemente de madrugada de seu consultório. “Atendo até as duas da manhã.” A menina- dos-olhos dessa portuguesa que chegou aqui aos seis anos são os adolescentes, de quem se faz, além de médica, amiga e confidente. É uma relação que lhe rende muitas situações inusitadas. Para quem pensa que os adolescentes não se abalam com as crises políticas, ela avisa: “Eles estão decepcionados, perplexos e cautelosos. Isso influi na vida sexual deles, porque sem um projeto coletivo ficam mais vulneráveis e tendem a não se cuidar.” Albertina deu a seguinte entrevista a ISTOÉ em seu acolhedor consultório, num bairro nobre de São Paulo.

ISTOÉ – Como estão os adolescentes diante dessa crise política?
Albertina Duarte Takeuti

Há um desencanto. Após o golpe de 64, eram anos difíceis, estávamos assustados, mas havia esperança e um grande movimento para mudar este País.
As pessoas se juntavam e sonhavam juntas. Agora os sonhos estão indo embora
e a falta de sonho dificulta o dia-a-dia. Os jovens são reivindicadores, têm um
senso de justiça fantástico e costumam agir rápido. Mas, diferentemente do que aconteceu em outras denúncias, eles estão desiludidos, reflexivos, cautelosos, esperando as apurações.

ISTOÉ – A falta de perspectivas influi na vida sexual deles?
Albertina Duarte Takeuti

O adolescente que não participa de um projeto coletivo tende a ser
mais vulnerável. Ele tem que ter papel individual e coletivo. Ao participar de grupos
de esporte, música, dança ou de discussão política, seu universo vai além do “
eu e você” e isso o fortalece. Se fica sozinho, chorando suas mágoas, tende a se ligar a grupos de risco. Se tem no parceiro o único amigo, o colo de que precisa
fica submisso a ele e relaxa a prevenção sexual. A menina fica com muito mais
medo de não agradar, preocupada com o corpo e as emoções. Ao participar de outras atividades, o adolescente desenvolve o juízo crítico e traça metas. Isso funciona como proteção. O adolescente que fica isolado, na internet, no quarto
ou nas ruas, é vulnerável.

ISTOÉ – Por que parece tão difícil lidar com os adolescentes?
Albertina Duarte Takeuti

A mãe diz: minha filha é tão boazinha, não sai de casa, não tem
amigos, só que tá vomitando muito, acho que ela está com gastrite. E a menina
está grávida. Os pais pensam que ser quietinho é forma de proteção. Fazem parte
da adolescência a contestação e a discussão. Eles querem explicar os porquês – querem dizer eu acho que é assim. Não contam uma série de coisas para os pais porque não querem desfazer as imagens que os pais têm deles. Faz parte da adolescência ter segredos. Eles têm medo da crítica dos pais ou simplesmente
não querem contar tudo.

ISTOÉ – A adolescência hoje não é uma fase muito estendida?
Albertina Duarte Takeuti

A Organização Mundial da Saúde determina o período dos dez aos 20 anos. Essa fase foi escolhida porque há riscos trazidos por muitas situações novas. O indivíduo assume um corpo de adulto. Descobre o amor e a sexualidade em relação ao outro, que precisa aprová-lo. Deixa de ver os pais como perfeitos. Isso os deixa críticos e até revoltados. Não estão contra os pais, mas é preciso dar um tempo para que, com tudo isso, consigam construir uma imagem própria de forma construtiva. Só que existe uma imagem imposta pelo consumo, um ideal físico que não condiz com o brasileiro. Nossos adolescentes têm hoje mais dificuldades de construir uma imagem positiva de si do que há 35 anos. A profissão é outro sonho que nem sempre bate com a realidade.

ISTOÉ – Qual o maior problema hoje com a atividade sexual do adolescente?
Albertina Duarte Takeuti

Os pais já percebem que os adolescentes têm atividade sexual. O grande problema do adolescente é a precocidade, não na idade, mas no vínculo. Pouco tempo de convivência para a intimidade e para não usar a camisinha. As meninas engravidam e alegam que conhecem o menino há tempos. Dois meses para eles é muito. Ela engravida, ele desaparece. Ela leva um choque. Soube de
um que falou para a menina que ia processá-la porque ela tinha 17 e ele 16 e
sendo assim ela é que o tinha seduzido. A mulher tem um movimento romântico. Acha que ele é tudo para ela, enquanto ele se pergunta se é o pai. Assumir, para muitos, é apenas registrar.

ISTOÉ – A menina é sempre a mais prejudicada?
Albertina Duarte Takeuti

Temos 700 mil partos por ano no Brasil de meninas de dez a 19 anos;
se consideramos até 20 anos, temos um milhão. São Paulo tem a menor taxa de parto adolescente do Brasil e ainda assim é de 17%. Há regiões que têm 31%. Como uma adolescente mãe vai arrumar trabalho? Engravidam e saem da escola. Outro agravante: quem engravida pela primeira vez precocemente reincide. O
período tumultuado, a falta de acolhimento, o sofrimento, tudo contribui para que
ela não se proteja novamente. A família da menina ou ela própria é quem cuida da criança. A família do garoto, no máximo, ajuda.

ISTOÉ – Por que o diálogo sobre sexo entre pais e filhos continua difícil?
Albertina Duarte Takeuti

Os pais melhoraram muito. Há 30 anos, nem pensavam em falar sobre orgasmo. Devido à Aids e à violência, os pais protegem os filhos para que tenham relações sexuais. Estão mais atentos, mas não viveram esse diálogo na própria formação. Falta saber o que é dialogar. Dialogar não é investigar, saber detalhes ou receitar comportamentos, é ouvir, entender, acolher e orientar. Os adolescentes me dizem que a mãe fala do jeito dela, sem ouvir, ou que os pais não estão preparados para saber das coisas. Eles sacam os pais. Sabem que, se contarem, receberão repreensões e limites. Os pais devem olhar mais, falar menos, e falar de emoções. Perguntar como se sentem, se estão sofrendo. Ser verdadeiros, dizer que gostam, que estão ali e também que não concordam com determinadas coisas, se for o caso, mas não dar receita.

ISTOÉ – A Casa do Adolescente ajudou a diminuir a gravidez precoce?
Albertina Duarte Takeuti

A casa do adolescente é um núcleo pequeno, que atendeu em dez anos 20 mil adolescentes e atende hoje 200 por dia. Mas seu modelo de atendimento está presente em 80% das cidades mais populosas de São Paulo, que concentram 80% da população adolescente. Mapeamos cidades próximas às faculdades e criamos uma cultura de acolhimento ao mudar a abordagem que se baseava na prevenção. Damos cursos com esta abordagem a médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionistas e educadores enviados pelos municípios. Também já fomos a quase todos os outros Estados, menos Rondônia, Acre e Amapá. Na América Latina, só não fomos ao Equador. Esse programa já ganhou prêmios no Canadá e foi apresentado nos EUA.

ISTOÉ – Quando se percebeu que era preciso mudar a abordagem?
Albertina Duarte Takeuti

A Casa do Adolescente foi criada em 1995 e já era um modelo tido como ideal pela Organização Mundial da Saúde, mas, em 1997, mudamos a abordagem baseados numa pesquisa com 2.337 adolescentes, feita com o patrocínio da própria OMS. Eles conheciam os métodos anticoncepcionais, mas não o usavam. Por quê? A menina tem medo de não agradar e o menino, de falhar. Já naquela época, as meninas diziam que a relação sexual fazia parte do namoro, mas 40% sonhava em casar virgem. A menina queria ser virgem para agradar e os meninos não esperavam mais isso. Vimos que tínhamos de falar de sentimentos e emoções, trabalhando a auto-estima, a auto-imagem, e o auto-cuidado e a tendência grupal do adolescente. Em seis anos, reduzimos 28% dos casos de gravidez adolescente no Estado. É o ovo de Colombo. Não é a falta de informação, é a insegurança que dificulta a negociação. Adolescente tem que negociar com o parceiro com segurança.

ISTOÉ – A falta de projetos de vida facilita o descuido. Não é o caso das meninas de classe média e alta, mas elas também engravidam. O que falta a elas?
Albertina Duarte Takeuti

Em todas as classes sociais, a questão é a mesma: dificuldade em negociar. As mais pobres têm menos ferramentas para negociar e sentem até que engravidar é o papel delas. As mais ricas têm uma segurança econômica e social que deveria dar a elas condições para negociar melhor, mas pode faltar-lhe auto-estima. Não sabem dizer não. Muitas engravidam sem gostar. Algumas me dizem: se eu exigir a camisinha, ele vai transar com a minha amiga. Os meninos, se não tivessem medo de falhar, não se oporiam ao uso. Na Casa do Adolescente, mandamos eles treinarem como um passo de dança. Também há a cobrança social. Como uma adolescente de 17 anos vai explicar para as amigas que não tem um ficante? As relações amorosas estão sem vínculo, e a mulher foi treinada para ter vínculos. O homem foi treinado para ser o dono do vínculo, para pôr a algema, a aliança, para prover, não para se vincular.

ISTOÉ – A lei que dispensa o boletim de ocorrência em caso de estupro, para que se faça o aborto no sistema público de saúde, facilita a fraude?
Albertina Duarte Takeuti

O estupro é muito doloroso, e um profissional de saúde sabe reconhecer a verdade. As mulheres continuam sendo abusadas e não protegidas. Trata-se de discutir como acolhê-las melhor, evitando o vexame da delegacia, onde ouvem coisas desagradáveis, são interrogadas e têm de andar para lá e para cá sem poder se lavar para colher material. Temos que pensar nas mulheres violentadas, não nas que podem burlar a lei. Uma equipe de saúde pode colher o material necessário como prova, protegê-las e acolhê-las. A vítima precisa tomar a pílula do dia seguinte em 72 horas, precisa tomar antivirais. Quanto mais rápido o atendimento, menos riscos.

ISTOÉ – O aborto deve ser liberado?
Albertina Duarte Takeuti

Pouquíssimas mulheres abortam porque não querem ser mães de jeito nenhum. Elas abortam uma situação de desamparo ou de despreparo. O aborto neste País é legalizado economicamente. Quem tem dinheiro faz. E as estatísticas mostram que as adolescentes que abortam voltam a engravidar em seis meses. Muitas abortam pressionadas pela família ou pelo namorado. A menina que aborta, se não for acolhida, fica ainda mais fragilizada e tende a se cuidar menos. Só 19% das nossas adolescentes são a favor do aborto. Homens e mulheres têm de discutir os aspectos físicos, emocionais e sociais do aborto, e não apenas uma lei. Muitas mulheres têm pavor de que o companheiro saiba, sentem vergonha. É um momento de extrema solidão para a mulher. Temos que saber como acolhê-la e como prevenir o aborto, porque ele é um ato de dor.

ISTOÉ – A relação de confidente, que a sra. desenvolve com suas pacientes, traz situações inusitadas?
Albertina Duarte Takeuti

Eu atendo no consultório até duas da manhã. Não tenho hora. As meninas me ligam sábado de madrugada. Uma me ligou porque estava com uma camisinha dentro dela. Fomos ao consultório. Eu nunca medico por telefone. Outra me ligou do banheiro de uma balada, dizendo que o menino queria transar com ela e ela não sabia se topava. O meu caderno de recados é divertido. Acho legal que elas liguem. Elas sabem que não vou quebrar a confiança delas, a não ser que estejam em risco. Mesmo assim, fico junto para falar com a mãe. Foi assim que nasceu o Disk-Adolescente, da Casa do Adolescente. Nas segunda-feiras, o tema é sempre a pílula do dia seguinte.

ISTOÉ – Um medicamento que não se pode tomar várias vezes, certo? Albertina ?
Albertina Duarte Takeuti

Certo. Temos que cuidar para que a necessidade da pílula não
se perpetue. Vinte por cento dos casos são acidentais, mas 80% ocorrem
por vulnerabilidade da pessoa. Temos que trabalhar com isso. Não temos
que trabalhar com doenças sexualmente transmissíveis, mas com saúde sexualmente transmissível, que é o afeto, que são os vínculos. É o que a pessoa espera e do que precisa.