Empolgado pelo espetáculo noturno da chegada de navio ao Rio de Janeiro, o compositor americano Cole Porter teria soltado a exclamação: “It’s delightful!” (Que deleite!). Na sequência, sua mulher, Linda, completou a admiração com um “it’s delicious” (que delícia!). Tendo bebido algumas doses de uísque-e-soda a mais, o inseparável amigo do casal, Monty Wooley, teria arrematado com chave de ouro a corrente de encantamento com o trocadilho “It’s de-lovely!”, que acabou servindo de título para uma das músicas mais famosas de Porter, morto há 40 anos, no dia 15 de outubro. Numa versão para o português, o compositor Carlos Rennó arriscou verter o comentário intraduzível de Wooley para “Que de-lindo!”. De qualquer forma, ainda não foi desta vez que Hollywood fez justiça à gênese do clássico da canção americana. Em De-lovely – vida e amores de Cole Porter (De-lovely, Estados Unidos, 2004), de Irwin Winkler, com estréia nacional prevista para a sexta-feira 3, não existe nenhuma referência à viagem brasileira do compositor, encarnado com preciosismo por Kevin Kline. Mas os lances mais conhecidos de sua vida glamourosa estão todos lá – as festas parisienses regadas a jazz, champanhe e gente rica (e interessante), como a própria Linda, mulher incrivelmente avançada, parente distante de Jacqueline Kennedy; ou a temporada veneziana, quando, já casado, Porter alugou o Palazzo Rezzonico, antiga residência do poeta inglês Robert Browning.

Uma vida e tanto, apesar do final melancólico, passado na solidão e em cima de uma cadeira de rodas, a perna direita amputada em razão de um acidente de cavalo. Já não compunha. Antes disso, havia deixado cerca de 800 títulos que animaram musicais da Broodway e de Hollywood, entre eles Night and day, You’re the top, I’ve got under my skin e Anything goes. Dezenove deles são defendidos no filme por astros pop como Elvis Costello, Robbie Williams, Mick Hucknall e Alanis Morrissette. À exceção de Sheryl Crow, que conseguiu destruir Beguin the beguine, a maioria não faz feio. Na dúvida, em vez de adquirir a trilha sonora, melhor levar para casa a ótima coletânea It’s de-lovely – The authentic Cole Porter collection, com os clássicos do americano interpretados por Artie Shaw, Coleman Hawkins, Lena Horne, Dinah Shore, Rosemary Clooney e, claro, Frank Sinatra. Outro lançamento recente é Cocktails with Cole Porter, com mais uma plêiade de títulos em versão lounge. Na onda dos álbuns de standards lançados por Rod Stewart, Bryan Ferry, George Michael e Robbie Williams, entre outros, Porter tem sido sempre lembrado. Caetano Veloso, que já havia gravado Get out of town, optou por So in love e Love for sale no CD A foreign sound.

Pode-se criticar o didatismo careta da cinebiografia de Winkler, que recorreu ao clichê do retratado repassando sua vida através de memórias e números musicais. Mesmo assim, o filme se mantém de pé graças à sucessão de canções notáveis. Uma sequência fantasiosa e imperdóavel do ponto de vista histórico, como a do ensaio do musical The gay divorce (1932) – quando o cantor se engasga com a letra cheia de onomatopéias de Night and day, sendo auxiliado pelo próprio Porter –, acaba embalando o espectador por uma razão muito simples: a música é muito boa, mesmo na voz do ator John Barrowman e do próprio Kline. É sabido que o intérprete original da canção era Fred Astaire. Winkler colocou em seu lugart um ator oportunista que se entrega aos braços de Porter numa carruagem em pleno Central Park enquanto Wooley sai para uma “caçada” noturna.

Uma dos méritos de De-lovely foi exatamente não esconder a homossexualidade do músico, famoso pela frase, reproduzida na história: “Quis experimentar todas as formas de amor disponíveis, mas nunca as encontrei em apenas uma pessoa ou no mesmo sexo.” Alguns minutos da história são gastos na descrição do flerte entre o compositor e um bailarino dos Ballets Russes, de Serge Diaghilev. Quando Porter abre o jogo com a mulher, ela argumenta, espirituosa, que, diferentemente dela, ele parece gostar mais de homens – e ficam entendidos. Mas paciência tem limites. Nos anos 1930, com a ida de Porter para Hollywood, ela se afastou do marido, só reatando depois do acidente, devido ao estilo de vida livre do parceiro. Nesta época, Hollywood levou às telas uma versão edulcorada do casamento dos dois sob o título A canção inesquecível (Night and day), dirigida por Michael Curtiz. Porter era pintado como um elegante bon vivant, sem nenhum traço gay, a não ser a escolha do ator que o interpretava – Cary Grant, célebre enrustido. Ao sair da sessão do filme, o compositor diz à mulher: “Se eu sobreviver a esse filme, sobreviverei a tudo.” Em relação a De-lovely, o que se mostra à prova do tempo e de qualquer violência é a sua música.