Em 10 de maio de 2000, uma reportagem de ISTOÉ começava com uma frase absolutamente incompreensível: No dina vit do de Abinu d doni come kicna do no ba Basinu terã mlazsa. Alunos do ensino fundamental de escolas públicas de São Paulo tentavam, sem sucesso, reproduzir um singelo ditado sugerido por uma professora da zona leste paulistana: “No dia 22 de abril, comemoramos os 500 anos do nosso Brasil,
que é uma terra maravilhosa.” Com uma
ligeira alteração (porque a comemoração dos 500 anos do descobrimento já passou), agora o mesmo texto foi apresentado a dezenas de alunos de escolas municipais e estaduais da capital paulista, de Guarulhos e Cotia, na Grande São Paulo; e de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG). E nada mudou.

Nesses quatro anos o Brasil teve três ministros da Educação (Paulo Renato, Cristóvão Buarque e Tarso Genro) e pelo menos 54 secretários estaduais
da área nos 27 Estados brasileiros, mas nenhum deles conseguiu alterar esse quadro. Os resultados de 2003 do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do MEC, dão conta de que apenas 4,8% dos alunos da quarta série do ensino fundamental da rede pública estão no nível adequado no teste de língua portuguesa e 6,4% no de matemática. Entre os da oitava série, 9,3% estão bem em português e 3,3% em matemática.

As escolas públicas estão repletas de alunos que não sabem ler e escrever. Mas muitos professores e diretores não mostram o problema por temer represálias. Alegam que, ao expor a situação, acabam penalizados. Com o compromisso de que os nomes de professores e de escolas não seriam revelados, ISTOÉ teve acesso a alunos de segunda a oitava séries que frequentam a escola pública regularmente, mas não estão alfabetizados.

Aprovação automática – A partir da adoção em boa parte do País da progressão continuada – o sistema de aprovação por ciclos (da primeira até a quarta série e da quarta à oitava) –, os estudantes que não lêem nem fazem as quatro operações aritméticas passaram a ser aprovados automaticamente. “Se reprovamos um aluno, temos de fazer uma longa justificativa das razões pelas quais ele não aprendeu. Mas não há nenhuma estrutura para o professor resolver isso”, reclama um professor da rede estadual, de Guarulhos. Muitos alunos precisam de atendimento psicológico e psiquiátrico ou outros cuidados especiais, mas a escola pública não está aparelhada para isso.

O mais espantoso é que não ocorreram avanços nem em casos apontados na reportagem de quatro anos atrás. Diego, que tinha 12 anos na época e estava na segunda série de uma escola estadual em São Miguel Paulista, na zona leste paulistana, continuou a frequentar a escola normalmente e foi aprovado até a sexta série, no ano passado, sem ser alfabetizado. Diante do mesmo ditado, agora aos 16 anos, o adolescente voltou a escrever frases incompreensíveis. E não lê nada. Desde o início do ano, está numa escola municipal, mas em um programa de alfabetização de adultos, por causa da dificuldade para frequentar uma sala de aula convencional.

Seu irmão Roberto, que tinha 15 anos e estava na quinta série, conseguia
em 2000 escrever apenas algumas palavras. Agora, envergonhado, diz que
não sabe escrever e nem tentou fazer o ditado. Ele parou o estudo várias vezes,
mas chegou até a sexta série. Este ano, entrou no curso supletivo de uma
escola estadual, mas parou novamente. Outros dois irmãos de Diego e Roberto – Rodrigo e Marcelo, 14 e 17 anos, respectivamente – também não sabem ler e escrever, mas foram encaminhados para a entidade assistencial Sociedade Pestalozzi porque necessitam de cuidados especiais. Os quatro garotos foram adotados, em 2000, pela analista de sistemas Josilay Santiago. O pai deles morreu de cirrose e a mãe, de Aids.

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Nas salas de aula, os alunos não alfabetizados sentem vergonha e constrangimento. Numa escola estadual na periferia de Guarulhos, o pequeno Marcos, nove anos, da terceira série do ensino fundamental, chorou ao não conseguir fazer o ditado. “Mas vou aprender a escrever. Senão vou virar um burrão, não vou saber andar por aí e se for a algum lugar eu me perdo (sic)”, dizia o garoto. Na mesma sala, outros cinco alunos estavam na mesma situação. Gabriela, 12 anos, conseguiu escrever apenas quatro palavras. Com o olhar perdido, não respondia a nenhuma pergunta.

Em uma escola municipal em Cotia, Gustavo, dez anos e na quarta-série, também não conteve o choro. Conseguiu rabiscar apenas alguns garranchos ininteligíveis. Ao lado, Wellington, 11 anos, escrevia frases sem sentido. No Jardim Coimbra, na zona leste paulistana, Rafael, 12, também na quarta série, freqüenta uma escola municipal, mas não consegue aprender e se sente discriminado. Esses alunos não têm contato com o mundo da escrita em suas casas. Marcos, por exemplo, diz ter vontade de ler jornal. O único que vê regularmente, com o seu pai, é um semanário da Igreja Universal do Reino de Deus. Rodrigo, 11 anos, de Guarulhos, vê partes de jornal velho que o pai consegue para forrar uma gaiola de passarinho.

Enquanto os filhos da classe média vão para o ensino fundamental praticamente alfabetizados, as crianças de baixa renda chegam virgens em termos de aprendizado. “E o problema é que o professor, acostumado ao uso da cartilha, ignora o conhecimento que o aluno, de alguma forma, já obteve”, constata Sílvia Pereira de Carvalho, especialista em psicologia da educação e coordenadora do Instituto Avisalá. “Assim, aqueles que já trazem informação de casa aprendem tudo rapidamente e os outros não.”

Falhas – Para Telma Weisz, doutora em psicologia da aprendizagem e supervisora do programa Letra e Vida da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, uma das razões do problema é o fato de a sociedade ter excessiva preocupação com quadras esportivas e computadores nas escolas. “Isso não faz alunos aprenderem a ler e escrever. E os professores não têm recebido a ajuda que precisam para atender as crianças adequadamente. Não têm porque não dá para ‘inaugurar’ professor bem formado. Não dá para levá-los ao palanque. O trabalho para formar bem professores também leva tempo para frutificar e fazer diferença nas estatísticas.” Telma lamenta que o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), implantado pelo Ministério da Educação no governo anterior, não tenha tido continuidade na maioria dos municípios brasileiros. Em São Paulo, o município e o Estado o mantiveram, embora com modificações.

Para combater o problema, a secretária municipal de Educação de São Paulo, Maria Aparecida Perez, diz ter investido na formação de professores e em projetos como os de rádio e salas de leitura nas escolas.

Diretor do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo, Ézio de Lima elogia a progressão continuada, mas acha que, para dar certo, deveria ter sido discutida com educadores, pais e alunos. “Precisávamos de escolas equipadas, redução de alunos nas salas de aula, formação de professores e melhoria de salários.”


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