A implacável caneta Bic parecia colada a seus dedos: Albertinho metia vírgula de meter medo. Avesso que sou a vírgulas, a cada fechamento entabulávamos uma sempre interminável e idêntica pendenga – e inevitavelmente a teimosia de sua Bic estava certa, e inevitavelmente a minha teimosia, errada, se divertia muito. Gramaticalmente a nossa conversa não levava a nada, mas nós sabíamos que há regras (antigas) que despontuam os manuais de redação e levam a tudo: ao aperto incessante dos laços da camaradagem, da amizade, do amor e do afeto. Nós discutíamos, como a exclamar: “Discussão? Uma vírgula! Há 16 anos trabalhamos juntos.”

Entre uma vírgula e outra, Albertinho, o meu amigo português de Fornotelheiro, preocupava-se também com a variedade (e quantidade) dos fatiados servidos nos fechamentos de cada edição (ele se referia aos frios dos lanches como fatiados). E entre vírgulas e fatiados, havia o amor pela Lusa e pelo time do Porto. Ignorante que sou em futebol, eu o provocava com lances imaginários de partidas nunca jogadas por esses dois times. E começávamos uma discussão… discussão, uma vírgula! Finalmente, entre as vírgulas e os fatiados, entre os fatiados e o futebol, Albertinho, 49 anos, casado, jornalista e revisor, exercia a paixão pelo sindicalismo e pela política, pontuadamente pelo PT. Quando Lula foi eleito presidente, ele passou a noite falando alto: “É Lula-lá, é Lula-lá, é Lula-lá.” Olhando o jeito de andar meio tortinho de seu corpo, contrapeso para o andar reto de seu caráter, olhei também a sua mão. Nela, a Bic do revisor vocacionado estava feliz porque Albertinho sempre apoiara esse partido a chegar ao poder – feliz e íntegra Bic que corrigia mentalmente até a grafia de placas de trânsito; feliz, íntegra e isenta Bic que corrigia idealisticamente até alguns erros de seu querido PT.

Em seu velório, na noite da terça-feira 23, perguntei a três de suas colegas da assessoria de imprensa da Assembléia Legislativa de São Paulo, onde ele também trabalhava: “Vocês têm uma foto do Albertinho trabalhando lá?” Todas as amigas, cada uma no tempo de sua dor e, já, da saudade, responderam: “Tem uma foto dele com uma Bic na mão.” Deitado no caixão e sem Bic, você pensa que engana que está morto de câncer? Carlos Alberto Rodrigues da Fonseca, você ficará sempre no melhor da emoção de todos os seus companheiros de ISTOÉ. E levanta daí porque eu quero discutir. Vem cá nos dizer se há vírgula obrigatória entre as duas últimas palavras dessa frase: Você não morreu não! Em sua homenagem, reescrevo: Você não morreu, não!

Antonio Carlos Prado, pela redação de ISTOÉ