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TRANSFORMAÇÃO
Marina deixou a selva para tratar da saúde e estudar com as freiras

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Em boa parte de sua infância, Marina Silva cumpriu uma rotina dura demais para qualquer criança. Levantava às 4h30 da madrugada, tomava o café que ela mesma moía em pilão, calçava os sapatos que fazia em látex, ligava o rádio e esperava pacientemente, sentada em silêncio na soleira da porta, a turma que sairia em caminhada para mais um dia de trabalho. Com a lua baixa e o sol ainda por nascer, o corpo demorava a despertar no trajeto de 15 quilômetros até a estrada de seringa. Depois, embrenhava-se na densa floresta em busca da “madeira”, como os acrianos chamam as seringueiras centenárias. O longo percurso era repetido quatro vezes ao dia. Foi assim dos 11 aos 16 anos. “De manhã a gente fazia o corte e à tarde voltava para recolher o leite em sacos de até 15 quilos”, contou à ISTOÉ a irmã mais velha de Marina, Maria Deuzimar da Silva, que até hoje vive na região do antigo seringal Bagaço, onde nasceram. As duas dividiram a lida com o pai, Pedro Augusto da Silva, e outra irmã, Maria Lúcia da Silva, um ano mais nova que a candidata a presidente da República pelo Partido Verde. 

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COMPANHEIRAS
Marina e a amiga de infância Dilma: confidente no convento

Já naquela época, a presença de crianças no trabalho de extração surpreendia. “As pessoas achavam um absurdo. Ficavam assustadas, porque não era comum meninas trabalhando no corte da seringa”, diz Deuzimar. “Normalmente, as mulheres cuidavam do roçado e os homens do seringal.” O problema é que na casa de Marina, de homem só havia o pai. O caçula, Antônio Arleir da Silva, nasceria mais tarde. Com sete filhas e a contingência de uma dívida com o dono do seringal, não restou a Pedro Augusto outra opção. “Fui tentar a sorte em Manaus e Belém, mas não deu certo. Quando voltei para o Bagaço, o patrão foi quem bancou as passagens. Tinha que pagar de volta”, explica o pai de Marina. Ele ainda resistiu à ideia de pôr as filhas no seringal, mas a mãe das crianças, Maria Augusta, foi firme. “Ela era muito orgulhosa e não queria ficar devendo”, diz Deuzimar. Em pouco tempo, as pequenas aprenderam o ofício. Começaram cortando até 150 seringueiras por dia. Logo, passaram a encarar as estradas mais compridas, com até 280 árvores. Também passaram a compreender a relação de amor que os seringueiros têm com a floresta. “Ela nos dá o sustento e nos faz sentir livres”, resume o pai. Além disso, segundo ele, “Marina achou que era melhor trabalhar à sombra das seringueiras do que debaixo do sol no roçado”. 

A mais de 70 quilômetros de Rio Branco, o seringal era abastecido de mercadorias levadas em lombo de burro. Ali não havia escolas, e as brincadeiras se resumiam aos bonecos de madeira e pano feitos pela avó. Quem viu Marina crescer na floresta lembra de uma criança brincalhona e muito criativa. “Às vezes, ela parava o corte e pegava a água que a gente levava para beber para tirar borboletas e cigarras que caíam na tigela do látex. Ficava alegre só de ver o bicho voar de novo”, diz Deuzimar. A outra irmã, Maria Lúcia, recorda também um episódio curioso. “Um dia a gente estava chegando na estrada de seringa e ouvimos um rugido de onça. Ficamos com tanto medo que nos empoleiramos numa árvore. Ela riu um bocado, apesar do susto”, conta. O pai também se diverte ao relembrar a vez em que a filha, cansada da rotina, decidiu plantar seu próprio seringal em volta da casa. “Depois de fechar o corte, as irmãs foram embora. E ela ficou ali colhendo várias mudinhas nos pés das seringueiras mais próximas. Daí foi pro meio do roçado e plantou um pezinho aqui, outro acolá”, diz.

QUASE FREIRA irmã maria Beatriz ainda lembra
da menina doente que chegou ao convento

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Das dezenas de seringueiras que Marina plantou no local, três sobreviveram à ruína do seringal Bagaço. Onde ficava a antiga propriedade, hoje é o curral de uma grande fazenda às margens da BR-364. O capataz Manoel Francisco Oliveira, também ex-seringueiro, foi quem derrubou a antiga casa da família de Marina. “Sempre que tinha eleição, vinha gente fazer comício. Então o patrão mandou derrubar”, explica. Depois de alguma conversa, Francisco permitiu a entrada da reportagem de ISTOÉ, junto com Deuzimar. Ela se emocionou ao voltar a pisar no pedaço de quintal em que brincava com a irmã. “Não entro aqui há 30 anos”, disse, com a voz embargada. De meados dos anos 70 até a década seguinte, os seringais daquelas terras definharam. O declínio da atividade extrativista levou o regime militar a impulsionar a ocupação do Acre por fazendeiros, a maioria pecuaristas do centro e do sul do País. “As autoridades só não consideraram que havia gente dentro daquelas áreas, famílias inteiras de seringueiros”, relata o jornalista Élson Martins, um veterano na cobertura dos “empates”, como ficaram conhecidos os violentos choques entre seringueiros e jagunços. Só no Bagaço, havia mais de 30 famílias.

 Marina viu o pai empunhando a enxada contra a derrubada da floresta, e anos depois se engajou no movimento sindical liderado por Chico Mendes. Antes de despertar para o ativismo político, porém, ela passaria na adolescência por um longo e doloroso processo de transformação. O primeiro baque veio com a morte da avó Júlia, uma mulher extremamente religiosa e a quem era muito ligada. Em seguida, a mãe também faleceu. Aos 16 anos, sem as mulheres que lhe serviam de referência e sofrendo com uma hepatite mal curada, Marina pediu ao pai para deixar o seringal. “Ela disse que não aguentava mais. Chegou cansada e ficou deitada no assoalho da sala. Disse que queria ir para a capital tratar da saúde”, relembra Pedro Augusto.

Em Rio Branco, Marina buscou ajuda na casa do então bispo do Acre, dom Moacyr Grechi, que depois se tornou uma espécie de seu protetor e mentor político. “O atendimento hospitalar no Acre era precário. Então, resolvi mandá-la para o hospital Santa Rita, em São Paulo. Consegui as passagens com um amigo diretor da Vasp e as freiras a acolheram lá”, conta dom Moacyr, hoje em Rondônia. Ao voltar, a jovem foi morar durante um tempo com os tios Aurélio e Mariquinha da Rocha Morais. Também arrumou emprego de doméstica, se alfabetizou e, em seguida, entrou num supletivo de 1ª à 4ª série. Sem perder o contato com a Igreja, resolveu então ingressar no convento das Servas de Maria Reparadoras. Segundo o livro de registro das freiras, Marina chegou ao convento em 19 de fevereiro de 1976, dez dias depois de completar 18 anos. “Está na 5ª série do 1º grau. É a primeira vez que convive com as irmãs”, escreveu a freira Maria Beatriz da Costa. “Possui oito irmãos vivos e três falecidos”, acrescentou. Maria Beatriz conta que era costume registrar no livro o que ocorria com as alunas. Em 29 de junho do mesmo ano, ela anotou a decisão de Marina de não tornar-se freira. “A própria candidata disse não ter vocação.” Não foi a única. Das sete alunas que frequentavam o curso preparatório, apenas uma seguiu o caminho religioso.

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SERINGUEIRA
Deuzimar (acima) e o pai, Pedro Augusto, trabalhavam com Marina na extração
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No convento, a melhor amiga de Marina era Dilma Alves Omar, com quem trocava confidências. Hoje com 52 anos, Dilma vive numa casa humilde da periferia de Rio Branco. Ela diz que a amiga adorava tomar banho no açude e comer em casa. “O baião-de-dois que a minha mãe preparava era seu prato preferido.” Segundo Dilma, o tempo do colégio de freiras foi um período de alívio para Marina. “Ela sofria na mão do tio, que era delegado. Parece que ele judiava um pouco dela, por isso ela foi para o convento”, revela a antiga amiga. As duas adolescentes dividiram o mesmo quarto e as dúvidas sobre a vocação religiosa. “Teve uma época em que a Marina dizia que seria freira e criticava dom Moacyr. Chamava ele de ‘bispo comunista’. Mas depois acabou entrando para as Comunidades Eclesiais de Base, fundou o PT e abraçou a política”, comenta. Dom Moacyr diz que Marina “tinha medo” dele e do teólogo Clodovis Boff. “Um dia foi assistir escondida a uma palestra nossa. Descobriu não só a possibilidade de ser cristão envolvido na política, mas que o evangelho a impelia a se comprometer com as causas sociais”, diz o bispo.

Dom Moacyr evita polêmica sobre a conversão da candidata presidencial à Assembleia de Deus em 2004, mas não esconde a mágoa. No Instituto Imaculada Conceição acontece o mesmo. Para a irmã Maria Claudia Barbosa, 79 anos, a opção da ex-aluna se deve a motivações eleitorais. “Fiquei muito sentida com sua ida para a Assembleia de Deus. Mas vocês sabem que um político inteligente sempre procura caminhos que o favoreçam mais. Para Marina, é uma abertura de votos. O Acre já está poluído de protestantes”, diz. Acostumada com as reviravoltas na vida da antiga amiga, Dilma não estranhou a conversão de Marina ou mesmo sua saída do PT no ano passado. “Ela deve ter suas razões”, pondera.