No curto espaço de 24 horas, Brasília oscilou na semana passada entre o acordo e o confronto, o aliado e o adversário, a coalizão e a colisão – dilema provável dos próximos meses do governo, do PT e da política nacional. Na quarta-feira 24, Luiz Inácio Lula da Silva promoveu a coalizão, prato forte do almoço que reuniu o presidente e 64 dos 76 deputados do PMDB em busca da aliança que o governo precisa para lastrear sua base, destravar o Congresso e vislumbrar a reeleição em 2006. Na quinta-feira 25, duas centenas de estudantes, protestando contra a reforma universitária, tentaram invadir o Congresso, quebraram vidraças, desafiaram a polícia e dois acabaram presos. A alguns quilômetros dali, de boné e bandeira vermelha na mão, nove mil manifestantes do Movimento dos Sem Terra trocaram o tradicional espaço de protesto do Congresso Nacional pelos virgens gramados do edifício-sede do Banco Central, colocado agora no centro do debate que põe em rota de colisão políticos e empresários, ministros e partidos, o Palácio do Planalto e o próprio PT. A coalizão que Lula imagina pode garantir seu futuro, mas também pode ser o começo de uma irreversível trombada com o partido que ele fundou, consolidou e levou ao poder.

Com um olho em 2006 e outro na claudicante agenda do Congresso, Lula assumiu pessoalmente a articulação política para, desta vez, concretizar um governo de aliança com os partidos aliados. O alvo principal, o PMDB, começou a ser cultivado, olho no olho, na noite de sexta-feira 19, na residência do ministro da Previdência, Amir Lando, num jantar com 16 dos 22 senadores da bancada do PMDB, a maior da Casa. Lula disse o que os senadores, favoráveis à permanência no governo, queriam ouvir: “Dois ministérios para o PMDB é pouco.” Adiantou também que os ministros José Dirceu e Aldo Rebelo não devem trocar de posto na reforma ministerial. Mais: “A reeleição (dos presidentes da Câmara e do Senado) está enterrada. É um problema a menos. Vou respeitar o direito do PMDB no Senado e espero que respeitem o do PT na Câmara”, disparou Lula, que terá de administrar a sucessão no Congresso. Magoado com o fim da reeleição, o atual presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), faz sinais ambíguos. Num dia acena com um acordo com o líder do partido na Casa, Renan Calheiros (AL), que quer sucedê-lo, e em outro insufla nomes e estratégias para abater o alagoano. A decisão também ficará nas mãos de Lula.

Crise dupla – O caminho para acertar o casamento com os aliados é longo e difícil. Depois de anunciar uma mexida ministerial para ceder vagas aos parceiros políticos, Lula entrou em campo para viabilizar a coalizão com as legendas que o apóiam no Congresso. Mas, até chegar lá, o governo terá que administrar um problema duplo. De um lado há uma crise abafada no PT que envolve insatisfação com os rumos da economia e com os sacrifícios de espaço e discurso que a coalizão irá exigir do partido. De outro lado, uma banda expressiva do PMDB, parceiro preferencial do Planalto por causa de sua estrutura nacional, está radicalmente contra a aliança com o governo petista. Embora tenham maioria apertada na executiva nacional, os caciques do PMDB temem uma derrota na convenção, pelo peso expressivo das bases dos Estados de maior bancada, como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, onde a oposição predomina. A estratégia da cúpula é adiar a convenção – tarefa muito difícil – e evitar uma fissura interna do PMDB.

Em sua seara, Lula também enfrenta problemas. Na reunião do diretório nacional do PT, no último domingo em São Paulo, convocada para fazer um raio X no desempenho eleitoral petista, sobraram críticas aos ministros da área econômica e apreensões quanto à parceria com o PMDB. “Podemos até fazer coalizão, mas não podemos virar suco”, antecipou-se o ministro Olívio Dutra, das Cidades, um dos candidatos ao primeiro desemprego da iminente mexida ministerial. “O governo é velho, ultrapassado e fisiológico”, fulminou o candidato derrotado à Prefeitura de Porto Alegre, Raul Pont (PT-SP), cacique da tendência radical Democracia Socialista, que atribuiu seu fracasso eleitoral ao desempenho da economia. Ninguém no PT é contra a coalizão, mas teme-se que, além da perda de espaços, a negociação política acabe em colisão em 2006, já que PT e PMDB são inimigos viscerais na maioria dos Estados. E a frase lapidar do líder peemedebista na Câmara, José Borba (PR), sobre o figurino mais adequado de ministério só ajudou a reviver velhos receios petistas: “O PMDB quer pasta com caneta, tinta e conta cheia”, resumiu o deputado, com desconcertante franqueza.

Além das desconfianças políticas com os novos parceiros, os petistas também bateram nos resultados da economia. O ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil, deixou claro que seu grupo político, mais desenvolvimentista, está ansioso por índices favoráveis para não comprometer a reeleição de Lula, e por isso busca um espaço para tensionar com a equipe e com as idéias do ministro da Fazenda, Antônio Palocci: “A política econômica de hoje não quer o crescimento”, criticou Dirceu, frisando que falaria mais se a reunião não estivesse sendo vazada para os jornalistas. “A reunião está sendo transmitida online”, alertou Dirceu, olhando para um dos petistas que entravam e saíam da sala. A partir deste momento, o Campo Majoritário do PT decidiu encerrar a discussão, fazendo uma nota pública em que critica suavemente a política de juros altos. A avaliação mais crítica e fiel ao tom da reunião, imune a vazamentos, foi reservada para um encontro pessoal com Lula, em Brasília.

Na segunda-feira 22, o presidente do PT, José Genoino, foi ao encontro de Lula e antecipou o clima da reunião. Mordido, Lula convocou inesperadamente os 17 ministros do partido para um encontro que atravessou a madrugada de segunda para terça-feira em Brasília. Lula foi curto e grosso: deixou claro que os petistas irão perder espaços na Esplanada, pediu em seguida uma explanação de Palocci sobre a economia, retomou a palavra e sentenciou: “Não mexo na economia, não tem volta. O caminho está tomado e ponto final. Não adianta inventar.”

Para bons e maus entendedores, foi mais do que um recado. “Foi a reunião  da carapuça. Lula pediu resultados e quem ficou com cara feia é candidato a deixar o governo”, resumiu um dos ministros que acompanharam a conversa. A bancada dos mal-encarados começou a cutucar até a jóia mais preciosa da coroa petista – a política externa. “Vejam a visita do presidente Putin, da Rússia, esta semana. Nós não levantamos o embargo russo à carne brasileira. Foi um completo fracasso da nossa diplomacia”, lamentava-se um parlamentar do PT, atento aos deslizes do Planalto. O coro dos descontentes ainda pode crescer. Esta semana o PT fará uma reunião em Brasília com os prefeitos eleitos. Foram escalados para falar justamente os ministros que estão na lista do desemprego: Humberto Costa, Olívio Dutra e Patrus Ananias. Indagado sobre as incertezas políticas, Lula manteve o costumeiro otimismo: “Vocês já me viram pessimista alguma vez? Nem o Corinthians me deixa pessimista.”