O atacante brasileiro Kaká, que joga no Milan da Itália, quase passou despercebido pelos vetustos corredores da Organização das Nações Unidas, na terça-feira 30. Naquele dia, ele foi nomeado “embaixador da ONU contra a fome”, mas o assunto dominante na casa era o sustento de um único africano chamado Kojo. Kaká teria driblado com facilidade a celebridade repentina do rival nos holofotes não tivesse Kojo o sobrenome Annan. Ele é filho do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e está sendo apontado como um dos participantes do esquema de corrupção montado pelo Iraque dos tempos de Saddam Hussein para a venda de petróleo em troca de medicação. Depois da guerra do Golfo de 1991, acertou-se um sistema que permitia a Bagdá trocar óleo por alimentos e remédios, com as transações sendo feitas por empresas particulares e a supervisão a cargo da ONU. O ditador iraquiano manobrou como quis as negociatas, numa rede de maracutaia internacional que valeu propinas para várias pessoas e entidades, além de lucros para o regime. Uma das firmas subcontratadas para supervisionar as operações era a suíça Cotecna, que teria enchido os cofres de Kojo com US$ 125 mil. O que, convenhamos, é uma ninharia perto dos US$ 30 milhões que a Halliburton, empresa da qual o vice-presidente Dick Cheney era sócio, conseguiu sem licitação no Iraque.

Na entrevista coletiva diária, no segundo andar do prédio da ONU em Nova York, o porta-voz de Annan, o americano Fred Eckhard, perdeu sua lendária frieza naquele dia. “Os pais não devem ser culpados pelos atos dos filhos.” Admitiu-se assim, ainda que obliquamente, a culpa do filho réu. Eckhard emendaria depois, sobre os negócios de Kojo: “Não há nada de ilegal nisso.” Não convenceu ninguém e a fogueira de intrigas estava ardendo. No dia anterior, William Safire, colunista do  NY Times, pediu a renúncia do secretário-geral.

“Existem duas investigações paralelas sobre o caso. Uma delas jogará luz sobre esta questão”, disse a ISTOÉ o embaixador da Argélia e atualmente membro do Conselho de Segurança, Abdallah Baah. Como tudo na ONU, as respostas dependem das tendências e interesses de quem é questionado. Rússia, China, França, Alemanha, Espanha e Reino Unido e outras nações  do Conselho de Segurança apóiam o secretário-geral. Mas se o panorama da situação for sob o ângulo de Dan Gillerman, o embaixador de Israel, terá um quadro mais sombrio: “O secretário-geral ainda não explicou todas as questões levantadas pela imprensa e pelos investigadores sobre as atividades de seu filho. Acredito que, para seu próprio bem e para o bem da instituição, o secretário Annan deveria esclarecer de vez as suspeitas”, disse. Um conselho que vem sendo abraçado por Annan. Na segunda-feira 29, ele disse aos repórteres em Nova York: “Eu tenho uma calorosa relação com meu filho. Mas ele atua num campo diferente do meu. Ele é um homem de negócios independente. É um adulto, e eu não me envolvo em seus assuntos. Além disso, eu não tenho nenhuma participação nas concessões de contratos feitos pela ONU. Eu peço a todos que esperem as conclusões dos trabalhos da comissão de Paul Volker.”

Paul Volker, ex-presidente do Federal Reserve, o Banco Central americano, lidera uma comissão que está investigando o caso. Essa comissão foi amealhada pela ONU e não tem vazado nada do que já constatou. O que gerou um contra-ataque daqueles que não vêem o secretário-geral com bons olhos: o governo de Israel e o governo dos EUA. A tropa de choque destes interesses foi enviada na forma de uma comissão parlamentar de inquérito do Congresso americano. Alega-se que, como o país paga 22% do orçamento da ONU – ainda que esteja com várias mensalidades atrasadas –, tem o direito de xeretar as práticas de negócios da casa. “Seguindo-se esta lógica, então o Japão – segundo contribuinte em volume no orçamento – também poderia montar uma comissão de inquérito. Ou Brasil, Sudão, Coréia, Cuba, França ou qualquer outro membro da Organização também poderia fazer o mesmo”, ponderou Volker a ISTOÉ.

Enquanto não se ouve a defesa e explicações do filho famoso, trabalha-se com vazamentos à imprensa – como o caso da empresa Cotecna, que foi passado para uma repórter do jornal conservador The New York Sun. A peteca da notícia foi imediatamente tocada pelas mãos pesadas de Safire, no Times, que há meses faz campanha contra a administração de Annan. Safire, ex-redator de discursos do presidente Richard Nixon, é considerado tão amigo de Israel que há quem o veja como lobista das causas do país. Israel, sabe-se, trabalha contra a permanência de Annan no cargo. O embaixador Gillerman até reuniu a imprensa em janeiro para atacar diretamente o secretário-geral. E o governo Bush, ainda mordido pela falta de apoio da ONU à guerra no Iraque – e elevando os decibéis de críticas à instituição por não mandar mais funcionário para cuidar das eleições de janeiro próximo naquele país – também está em campanha contra Kofi Annan.