Célebre graças a suas opiniões firmes, o ex-ídolo do Corinthians e médico traumatologista fala sobre o desastre brasileiro na Copa da África do Sul e sobre os bastidores do futebol

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Ele encantou o mundo nas Copas de 1982 e 1986 com seu estilo elegante e os toques certeiros de calcanhar. Foi ídolo do Cortinthias e um dos criadores da chamada Democracia Corinthiana nos anos 1980, na qual os jogadores participavam ativamente dos rumos do clube. Médico traumatologista em Ribeirão Preto (SP), Sócrates de Oliveira, 56 anos, que nasceu em Belém do Pará, continua dono de opiniões firmes e polêmicas e vê com ceticismo a realização da Copa no Brasil em 2014. “O País não ganha nada com a Copa do Mundo, só perde. Só quem leva vantagem é a Fifa”, diz ele, que foi eleito pela entidade um dos 125 melhores jogadores de futebol vivos de todos os tempos. Com a demissão de Dunga, Sócrates acredita que qualquer um pode ser técnico da seleção brasileira. “Tem os melhores jogadores do mundo nas mãos, aí fica fácil, né? Difícil é ser técnico do Madureira, de times sem estrutura, sem bons jogadores”, arremata.

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ISTOÉ

Você pertenceu a uma das seleções mais criativas do futebol brasileiro, a de 1982, que não conseguiu o título mundial. Nesta Copa, Dunga montou uma seleção oposta àquela e também não venceu. Qual é a diferença entre vocês?

Sócrates de Oliveira

Fica mais fácil inverter a resposta. A única coisa que temos em comum é que perdemos, de resto é tudo diferente. Se fosse um campeonato, o time de 1982 certamente seria campeão. Mas a Copa não é um campeonato, é uma feira, está aberta a todos e nem sempre ganha o melhor. É um torneio curto para os países e clubes mostrarem o seu produto ao mundo a cada quatro anos. É um campeonatinho que não mede nem quem é o melhor. A Copa não vale nada, é só para ganhar dinheiro.

ISTOÉ

O futebol arte ainda tem espaço na Copa?
 

Sócrates de Oliveira

Claro. O futebol bonito é mais eficiente, tem muito mais chances de ganhar. Ele não é só bonito, ele é melhor. Não é com time ruim que se ganha campeonato, é com time bom. Time bom pode até perder, mas time ruim nunca ganha. A opção pelo jogo feio e pragmático é comodidade. É preferível ter um time jogando menos do que pode, de forma mais feia, por que fica mais fácil explicar a derrota do que arriscar um jogo bonito, que se não vinga, dificulta qualquer tentativa de explicação.
 

ISTOÉ

O Dunguismo é calcado no jogo pragmático.

Sócrates de Oliveira

Minha visão do esporte é diferente da que tem o Dunga. Eu gosto de espetáculo, não me interessa quem vai ganhar ou perder. Aliás o mundo quer ver espetáculo do futebol brasileiro. Ganhar ou perder pouco importa. Criou-se a ideia de que a seleção brasileira vai sempre ganhar a Copa e isso é impossível. Mas dar show, fazer um espetáculo é sempre viável. Olha o time do Santos. Quem gosta de futebol correu atrás do Santos nesse primeiro semestre. As pessoas querem jogo bonito que diverte, independe do resultado. E futebol brasileiro é isso, não precisa inventar. Nossa cultura depende de criatividade, do talento e da independência. Fazer o jogo pragmático é jogar o jogo dos outros, que, por sinal, são muito melhores do que nós quando o objetivo é esse.

ISTOÉ

Quem encanta hoje?

Sócrates de Oliveira

A Alemanha, sem dúvida. São os melhores da Copa, mas isso não quer dizer que vão ganhar. Eles podem até perder, mas nem por isso estarão errados. Antes um time que jogue com elegância e tenha chances do que uma Coréia do Norte, por exemplo, que não arrisca e não tem chance alguma. Hoje vemos a Alemanha mudando sua filosofia, jogando de forma mais livre do que antes. É muito bonito. E não é exclusividade deles, todos podem e devem tentar.

ISTOÉ

Que impacto tem sobre os jogadores o comportamento descontrolado de um técnico à beira do campo, como Dunga?

Sócrates de Oliveira

É inadequado. Quem deve estar envolvido emocionalmente com o jogo é o jogador, que está em campo. O treinador, que é símbolo do time, deve ficar calmo para passar tranquilidade aos atletas. Quando o técnico se desespera passa pelo menos parte desse sentimento para os jogadores. Cada atleta tem sua sensibilidade – alguns vão sentir mais, outros menos, mas todos sentem. Com o gol da Holanda, o Brasil desandou, a equipe não teve força para enfrentar essa alteração emocional. A situação era ainda mais complicada por que não havia liderança dentro de campo. Não havia um jogador para pedir calma, colocar as coisas no lugar na hora do aperto e mostrar que o descontrole não adiantaria nada. Esse líder nunca existiu nessa seleção. Às vezes, acontece do treinador prejudicar a ascensão natural de um líder. Não sei se foi esse o caso do Dunga. Mas não é incomum o treinador interromper o surgimento de lideranças entre os jogadores que podem, eventualmente, contestar outras esferas de poder de um time.

ISTOÉ

Essa incapacidade de lidar com a parte emocional é uma característica dos atletas brasileiros?

Sócrates de Oliveira

Existe uma lenda no Brasil de que o preparo emocional é desnecessário. Eu acho fundamental. Todo atleta precisa disso. Oferecer elementos para que eles possam trabalhar e apresentar o que têm de melhor é chave. Mas no nosso País ainda não se dá valor a isso por que somos muito amadores, até no futebol. Boa parte dos jogadores no Brasil não tem preparo emocional. Poucos percebem que em um time é íntima a relação entre uma noção sadia de coletividade e a estabilidade emocional dos atletas. Se o jogador está em uma equipe desestruturada, ele perde o controle facilmente por que sabe das dificuldades que vai encontrar caso surja um obstáculo. Foi isso que aconteceu no jogo do Brasil contra a Holanda. O time não tinha uma estrutura coletiva forte, não tinha estabilidade emocional e isso comprometeu a confiança da equipe em si mesma.

ISTOÉ

O Dunga disse que "ninguém prepara o jogador para perder”. O técnico não precisa preparar o time para perder ou jogar em desvantagem?

Sócrates de Oliveira

Para saber ganhar o sujeito precisa saber perder. Todos devem se preparar para jogar em desvantagem. Senão não tem sentido jogar futebol. Quantas vezes o time sai ganhando e quantas vezes sai perdendo? Há um equilíbrio dessas realidades. Time bom é o time que não muda com placar parcial. Para isso o técnico precisa montar uma equipe equilibrada. A Espanha, por exemplo, tem atletas que jogam da mesma maneira independentemente do placar. Foi um time que foi montado para jogar assim, que tem uma cara que é construída com o tempo.

ISTOÉ

Dá pra ensinar um jogador a ter cabeça fria?

Sócrates de Oliveira

Esse tipo de coisa não se ensina, se constroi com a montagem de uma equipe equilibrada. Se não existe a noção de equipe, cada um vai tentar resolver individualmente e o time deixa de ser uma time para virar um bando de gente jogando junto com a mesma camisa. E controlar esse tipo de equipe é impossível.

ISTOÉ

O que achou da escalação do Dunga?

Sócrates de Oliveira

Ele deixou de levar jogadores que seriam fundamentais em momentos de dificuldade. É o caso do Paulo Henrique Ganso (do Santos), do Alex (do Fenerbahçe, da Turquia), do Ronaldinho Gaúcho (do Milan, da Itália) e do Alexandre Pato (do Milan), por exemplo. Foi uma opção do Dunga que, como técnico, tem essa autonomia e a exerceu. Mas é óbvio que esses jogadores têm mais chances de mudar um jogo do que os volantes que ele levou. Afinal, se você tem uma Ferrari na garagem, por que vai levar um Fusca? Você tem de levar os melhores.

ISTOÉ

Jogadores jovens como Ganso e Pato estarão maduros para a Copa de 2014?

Sócrates de Oliveira

Um jogador que disputa campeonato brasileiro por um time grande como o Corinthians, por exemplo, sofre muito mais pressão do que um jogador de seleção em uma disputa na África do Sul. Esses jogadores, Pato e Ganso, já provaram que estão mais do que maduros, poderiam ter sido convocados nesta Copa.

ISTOÉ

O fato de os jogadores partirem para o exterior cada vez mais cedo afeta o desenvolvimento físico e emocional deles?

Sócrates de Oliveira

O ideal é não ir embora tão cedo. Está mais do que provado que é viável, economicamente, que o jogador fique no Brasil desde que tenhamos uma gestão profissional do esporte. O futebol brasileiro é o mais acompanhado e noticiado do mundo. A gente precisa parar de vender o artista e começar a vender a obra. Mas falta organização, então o jogador acaba sendo vendido e o dinheiro que entra é mal aproveitado. Não é a viagem para o Exterior que compromete o desenvolvimento físico e emocional do atleta. Em última instância, dentro ou fora do Brasil, o que atrapalha é a falta de educação e esclarecimento. O jogador precisa ser um cidadão, saber se apresentar e se colocar. Ele é referência para as novas gerações, tem que dar o exemplo.

ISTOÉ

A seleção ficou concentrada por 52 dias, com pouquíssimas folgas e praticamente isolada. Isso é bom?

Sócrates de Oliveira

Eu acho um exagero e uma grande bobagem. Sou contra concentração até de uma hora. Sou a favor da responsabilidade de cada um. Tratar todos como crianças não é produtivo. E quanto mais você prende, mais vontade de sair e fazer besteira os jogadores vão ter. Os atletas que estão lá sabem como devem se comportar. Se não souberem, nem deveriam estar no futebol profissional.

ISTOÉ

A farra que foi a Copa de 2006 não justifica o rigor?

Sócrates de Oliveira

Não justifica. A superexposição só existe por que todos estavam no mesmo lugar, no mesmo cárcere. Se cada um estivesse em um lugar, com a família ou passeando durante a folga, isso não teria acontecido.

ISTOÉ

A África do Sul foi uma boa escolha de sede para a Copa?

Sócrates de Oliveira

A escolha é política. Algumas coisas não funcionaram bem por lá. Eles construíram muitos estádios novos e maravilhosos, mas quem vai querer usá-los depois? Temos que esperar para ver qual será o legado, mas não tenho grandes expectativas. A Grécia é um exemplo de como grandes eventos esportivos nem sempre deixam um legado bom. O país está quebrado, em parte, por causa das Olimpíadas de 2004.

ISTOÉ

A briga que envolveu o uso ou não do Morumbi em 2014 mostra que a cartolagem e a política ainda dominam o futebol brasileiro?

Sócrates de Oliveira

O objetivo final de toda essa confusão é desviar dinheiro público e jogar dinheiro fora. Está claro que a estratégia é protelar as obras ao máximo para que não haja licitação. Os legados do evento serão pífios. Não vai ter nada de bom. Poderia ser positivo, mas não na mão de quem está gerindo o futebol e a política hoje no Brasil. Quem acredita nessa história de o que o município e o Estado de São Paulo não vão abrir o cofre para garantir as obras nos estádios? O País não ganha nada com a Copa do Mundo, só perde. Só quem leva vantagem é a Fifa.

ISTOÉ

É certo alguém ficar 20 anos à frente da Confederação Brasileira de Futebol, como está o Ricardo Teixeira?

Sócrates de Oliveira

O regime está errado. Sou um dos proponentes de uma emenda constitucional que revê a duração desses mandatos. Um sistema que permite a manutenção no poder por 20 anos está errado. Temos que mudar a legislação. Há dez anos lancei uma anticandidatura à presidência da CBF para discutir o modelo do regime de eleição dos nossos lideres. Mas até agora não deu em nada. Foi para o Congresso, mas o processo é lento e depende de uma discussão que não tem acontecido.