Eles são milhares e estão por toda  a parte. Na porta dos hotéis, nos botecos ou sentados literalmente à beira do caminho que os leva – por R$ 5 ou R$ 7 por sacola – a atravessar com contrabando, quantas vezes for possível, a Ponte da Amizade. Como se não tivessem mais nada a perder, se apresentam sem hipocrisia: “Muito prazer eu sou laranja.” De quem? Ninguém sabe. Nem eles nem a Receita Federal, tampouco as polícias das mais diversas esferas que estão marcando sob pressão a muamba que sai do Paraguai para abastecer – de grandes redes a camelôs – o voraz mercado consumidor brasileiro em vésperas de Natal. Para as autoridades, são eles esses oito mil laranjas – o exército de uma das maiores organizações criminosas, a rede mundial do contrabando. Para os laranjas, o patrão é muy amigo e garante o pão de cada dia, ou seja: de R$ 600 a R$ 1.200 ao mês. A turma que gerencia e paga está nos ônibus ou em Foz do Iguaçu. Parte também da cidade paranaense a lista de encomendas para lojas já determinadas pelo “patrão”, que tem a opção de fazer o pedido, assim como o pagamento das mercadorias, diretamente aos principais centros distribuidores que estão do outro lado da ponte, em Ciudad del Este.

Num município em que a informalidade impera e emprega, o contrabando sustenta indiretamente quase o mesmo número de desempregados da região (40 mil pessoas). Quem faz parte do ciclo da muamba, seja em que ponta for, de santo não tem nada. Além do crime, eles têm em comum a miséria, comungam da ausência do Estado e da falta de capacitação profissional. Agentes que participam da Operação Cataratas, que começou em 8 de novembro e terminará no dia 22 de dezembro, contam que mais de 50% dos empregos do comércio são tão informais quanto os dos laranjas. Logo, Foz, que segundo o IBGE abriga 290 mil habitantes, vive do resultado financeiro obtido pelos laranjas, que acabam multiplicando o emprego indireto diante da necessidade de sua logística. Vendedores de quentinha, por exemplo, são muitos. Cada refeição custa R$ 2,50.

O mesmo faz o dono de uma oficina mecânica, que só fala sob garantia absoluta de que não será identificado. Ele revisa os ônibus, já muito rodados, para que voltem ao lugar de origem abarrotados de mercadoria, mas sem problemas. “Aqui, quem fala muito ou tenta roubar um laranja aparece morto.” As oficinas nas imediações dos hotéis de Vila Porte são muitas. Os hotéis são verdadeiros depósitos de contrabando, mas geram emprego. A diária de cada quarto gira em torno de R$ 50 e, normalmente, três laranjas dividem a conta. O risco existe, já que muitos hotéis são estourados pela polícia. Na terça-feira 30, à tarde, em um só quarto foram encontradas 90 caixas de cigarros falsificados do Paraguai. O dono não apareceu. Estava sentado num bar em frente aplacando a perda de US$ 4 mil tomando uma cerveja
gelada. O potiguar, grisalho e de olhos azuis, provocava a reportagem de ISTOÉ dizendo: “Vocês querem coisa grande? Vão para São Miguel que lá a carga pesada de informática, eletrônicos e maconha está passando por US$ 2 mil o ônibus. Essa operação deveria se chamar Cascata. Só estão pegando nós, os pequenos.” No dia seguinte à apreensão, lá estavam quatro ônibus prontos para novo carregamento e o hotel funcionando a todo vapor.

Bombas – Mas é de pequeno em pequeno que o mercado transborda de cigarros falsos. Essa é uma das mercadorias preferidas dos muambeiros, apesar dos conhecidos componentes misturados à sua fabricação. No Hotel Passaport um laranja de brinquedos, sentado sob as caixas também confiscadas, ganhou dois pacotes da polícia. Ao ser indagado sobre a bomba que leva à boca quase sem dentes, respondeu resignado: “É o que dá pra nós fumá, né?” Em um só ônibus o recorde da Operação Cataratas foi apreender 683 caixas. A receita estima que de US$ 340 mil das mercadorias apreendidas só em Medianeira correspondem a cigarros. Segundo a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), cerca de 6,6 bilhões de cigarros falsos chegam todo ano ao Brasil, vindos do Paraguai, sendo 85% concentrados nos mercados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Uma evasão de R$ 1,4 bilhão de impostos.

Outro tipo de fumo que está dando dor de cabeça à fiscalização é a maryjuana (maconha) de Capitão Bado. A erva transgênica, plantada pelos sem-terra paraguaios, teve a sua melhor safra este ano. Com 30% a mais de THC devido à alteração genética da semente,ela está encalhada. O quilo, que deveria custar R$ 100 devido ao seu grau de pureza, baixou para R$ 60 e agora está sendo vendido a R$ 30. Caso não seja despachada, a safra se perderá devido ao acúmulo de fungos que provocam mofo. Mas mesmo assim há os que se arriscam. Só no posto de Medianeira, na BR-277, foram pegos 645 quilos. No ramo agrícola, vale até caixão de defunto para se contrabandear o que hoje vale ouro: o agrotóxico. Na madrugada de quinta-feira 2, um carro funerário transportava um féretro lotado de herbicida, fabricados na China, que variam de US$ 25 a US$ 170 no Paraguai, preço três vezes menor do que os praticados no Brasil. Eles são mais concentrados e sem selo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Usado em doses não adequadas podem contaminar e inviabilizar a exportação do plantio. Recentemente, a China devolveu soja brasileira sob o argumento de contaminação. Os produtores do Sul e de Mato Grosso são grandes compradores do genérico chinês que entra no País via Paraguai e que, por uma taxa de 20% sob o preço, pode ser entregue diretamente na fazenda em qualquer lugar do Brasil, como explicou o vendedor de uma birosca chamada Super Agro, situada na avenida Internacional, 127.

No mundo dos eletrônicos e da informática, o custo e o risco são maiores. Mesmo assim, a Operação Cataratas não faz água nos negócios de Ciudad del Este. A parceria entre chineses e árabes fez explodir as vendas. Um distribuidor libanês contou que seus negócios continuam em alta. Sem rodeios, disse vender filmadoras e máquinas fotográficas digitais que ultrapassam os US$ 1 mil cada uma a quem quiser comprar. Não se inibiu em mostrar numa pequena sala, com vidro fumê, um comprador brasileiro embalando em plástico-bolha centenas de câmeras e filmadoras. “Sabem para onde estão indo? Para São Paulo. Vender não é ilegal. Como isso vai passar para o Brasil é problema dele.”

Mototáxis – Mas não é bem assim. Grandes distribuidoras têm esquemas para passar  a muamba pela ponte e até o local de destino. Mas o mesmo simpático árabe conta que por US$ 8 ou US$ 10 os mototáxis passam o produto. Esses mototáxis trabalham dia e noite. Só do lado brasileiro existem cinco grandes cooperativas, sem contar os informais. Um dos rapazes contou que faz até 50 viagens por dia. Só na sua associação, que é uma das maiores, existem mil cadastrados. Trabalhar cumprindo horário, com carteira assinada, nem pensar. Mototaxistas e laranjas preferem ganhar mais com o risco, como é o caso de um dos vigias de um depósito clandestino de cigarros, situado em uma das mais de 200 favelas, a maior parte na beira do rio Paraná. Ele trocou o emprego de garçon, onde recebia R$ 600, para ganhar o dobro. O número de homicídios, os oficiais dão conta de 35 por mês, nessas localidades, não o assusta: “Se estiver roubando o patrão ou tentando dar uma volta no tráfico, morre e ponto final.”

A evasão escolar, por exemplo, aumenta, e as salas de aula ficam às moscas em época de pico nas vendas. Professores da rede estadual e municipal não escondem que os jovens faltam às aulas para trabalhar no contrabando. Está cada vez mais difícil competir com o crime quando não se tem uma  estratégia capaz de apontar novos horizontes. Até os políticos locais estão insatisfeitos com a operação desencadeada para conter o contrabando. Dono do Hotel Manus – já multado em R$ 30 mil e estourado pela Receita em conjunto com a Promotoria Contra o Crime Organizado por armazenar muamba – o vereador conhecido como Maninho foi reeleito. Os políticos defendem o trabalho da fiscalização, mas falar em fechar a Ponte é motivo de guerra. Não querem Forças Armadas na região e pedem aumento da cota legal de compras de US$ 150 para US$ 500. Enquanto isso, a sangria continua.