O horizonte aberto das viagens de moto de Che Guevara foi trocado pelo ambiente claustrofóbico de um edifício mal-assombrado no novo filme de Walter Salles, Água negra, que estréia no País na sexta-feira 12, depois de ficar por duas semanas entre os dez filmes mais vistos dos Estados Unidos. Refilmagem de um título de sucesso da nova onda de horror japonesa, a obra é a primeira incursão do diretor de Central do Brasil em Hollywood. Fala de uma mulher que se separa do marido e se muda com a filha de seis anos para um novo apartamento. Não bastasse o porteiro ríspido e a vizinhança sinistra, seu escuro quarto-e-sala logo começa a apresentar problemas – primeiro é uma goteira, depois são os passos no andar de cima e mais tarde… Da capital francesa, onde se passa o episódio do filme coletivo Paris, je t’aime, que terá ainda Jean-Luc Godard e os irmãos Coen, Salles fala de sua experiência em filmar nos Estados Unidos e de sua aventura no gênero horror. Adianta também como será Linha de passe, que rodará no Brasil, com Daniela Thomas. “Será uma espécie de road-movie urbano.”

IstoÉ – Como foi filmar Água negra nos Estados Unidos?
Walter Salles –
A parte mais interessante foi o trabalho com os atores. Jennifer Connelly, Tim Roth e John C. Reilly são muito talentosos e também generosos –
não por acaso, todos vêm do cinema independente. Outro aspecto positivo foi colaborar com craques como Affonso Beato e Daniel Rezende, que me salvaram muitas vezes durante a filmagem. O mais difícil foi conviver com um tipo de cinema em que não se pode reinventar um filme na medida em que ele é feito. Para quem gosta de trabalhar com storyboards, planejando cada cena de antemão como Hitchcock, imagino que esse sistema possa funcionar. Para mim, que venho da escola do documentário, a realidade é outra.

IstoÉ – Você normalmente gosta de filmar a partir de argumentos originais.
E a experiência de fazer um remake?
Salles –
Eu já tinha, de certa forma, vivido essa experiência antes. Abril despedaçado tinha sido filmado duas vezes antes da interpretação que Sérgio Machado, Karim Aïnouz e eu procuramos dar ao texto de Ismail Kadaré. A versão que John Huston fez de O falcão maltês foi a terceira realizada num espaço de dez anos. A questão é saber se uma nova versão de um texto ou de um filme pode trazer alguma luz adicional sobre um tema – ou não. Em relação a Água negra, o roteiro de Rafael Iglezias tinha pontos interessantes. Era uma história sobre a solidão urbana e o abandono, mais do que um filme de terror. O roteiro falava de uma relação mãe-filha e dos demônios internos daquela mãe. Por último, mostrava que nos Estados Unidos até os fantasmas são solitários…

IstoÉ – Como foi dirigir um filme de horror, um gênero tão codificado?
Salles –
Os filmes que me levaram ao cinema foram os do neo-realismo italiano, do cinema novo e da nouvelle vague. Mas, desde a adolescência, também fui marcado por filmes de gênero como Repulsa ao sexo, de Polanski, ou O Samurai, de Melville. Às vezes, os filmes de gênero conseguem revelar as disfunções das sociedades que retratam. O filme noir, por exemplo, põe a nu a violência constitutiva da sociedade americana. Já o filme de terror investiga a questão do medo. O medo do desconhecido, o medo do outro. E, como dizia Kubrick, questiona também a mortalidade. Foi essa questão que o levou a fazer O iluminado.

IstoÉ – Como encontrou o cenário da Roosevelt Island?
Salles –
Aquele espaço repetitivo, angustiante, me lembrou um pouco Entre o ceú e o inferno, de Akira Kurosawa. Fica em frente a um dos lugares mais caros do planeta e, no entanto, é um dos mais desumanos e desestruturados que já conheci. Era o espaço ideal para traduzir a decomposição psicológica de Dahlia, a personagem vivida por Jennifer Connelly no filme.

IstoÉ – As cenas de efeitos especiais foram muito programadas? Foram
um bom aprendizado?
Salles –
A maioria das cenas com água foi filmada ao vivo. Aliás, Jennifer Connelly teve que ser corajosa para encarar essa provação no meio do inverno canadense, onde filmamos o apartamento. Algumas cenas pediram efeitos especiais de pós-produção, quase todas coordenadas por Affonso Beato. Pessoalmente, estou cada vez menos interessado pela tecnologia…