Sessenta anos se passaram, mas, toda vez que relembra o impacto, Fujiko Masumoto abaixa a cabeça e levanta os braços. Num gesto inconsciente, repete sua frágil tentativa de proteção. Grávida de nove meses, Fujiko estendia roupa no varal às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945 quando foi atingida por uma violenta enxurrada de luz e calor. “Depois da explosão de luz, subiu uma nuvem de cogumelo atrás da montanha”, conta. “Ficou muito, muito quente e começou a chover cinza.” Atrás da montanha Tenjô, a 30 quilômetros da casa onde Fujiko se abrigara para ter o bebê, Hiroshima acabara de ser aniquilada pela primeira bomba atômica da história. No ataque, 70 mil morreram de imediato e 77 mil ficaram feridos. Fujiko só se deu conta da extensão da tragédia um mês depois, quando tentou voltar à própria casa, no centro de Hiroshima, com Yaeko, a filha recém-nascida.

“Quando entrei na cidade, não tinha nem caminho. Encontrei montanhas de ossos, crânios por todo lado”, relata. Depois de muito circular entre escombros, Fujiko identificou sua antiga casa pelos destroços de uma pia. É que na frente da construção de madeira, Fujiko e o marido, Tsutomu Watanabe, mantinham uma barbearia. “Perto da pia de lavar cabelo tinha um cadáver queimado, todo preto. Mesmo sem certeza, enterrei como meu marido.” Como outros moradores da cidade, ela montou uma barraca no lugar, onde viveu com a filha durante três anos. No começo, só comia as provisões distribuídas pelas forças americanas. “O peixe já chegava estragado, mas eu só pensava em sobreviver. Quando vejo mendigo catando comida no lixo volto no tempo, nas tristezas acumuladas. Se a fome é muita, comida estragada não faz mal.”

Hoje com “82 anos e meio”, seis meses mais novo que Fujiko, o terapeuta Kimio Okada entrou em Hiroshima no dia seguinte à tragédia. Convocado para servir o Exército, tivera uma folga e voltava para o quartel, a duas horas de trem de Hiroshima, quando a viagem foi interrompida. “O calor era terrível. Pior ainda era o cheiro de carne humana queimada”, rememora. Para chegar ao quartel, Okada precisou atravessar quase cinco quilômetros e pegar outro trem. “Não tinha nada vivo. Nem passarinho, nem cachorro. Dentro dos ônibus, as pessoas estavam sentadas, estorricadas.”

Como pelo menos outros 200 sobreviventes da bomba atômica, Okada e Fujiko imigraram para o Brasil, a maioria para São Paulo. Okada, que é naturalizado brasileiro, uma raridade entre japoneses de sua faixa etária, vivera na capital paulista durante a adolescência. Em 1940, seu pai, funcionário do consulado japonês na cidade, decidira mandá-lo de volta ao Japão, para estudar. Fujiko, que se casou de novo em 1949, deixou o Japão 17 anos depois, com o segundo marido, Susumu Masumoto, e quatro filhos. Embora Masumoto também fosse barbeiro, vieram na brecha aberta pelo Brasil para receber agricultores. Em março passado, ela voltou à cidade natal, para um check-up num hospital especializado com a filha Yaeko, a que nasceu uma semana depois da tragédia. “Yaeko tem problemas psicológicos graves”, confidencia. “É difícil superar tudo o que passou”, completa, com a tradução da filha caçula, Riyoko, 55 anos, já que não aprendeu português. “Eu mesma não tinha ânimo para nada quando vivia na barraca igual favela em Hiroshima. Como barbeiro, era voluntária num abrigo para órfãos, mais pela esperança de encontrar alguém conhecido.”

Os caminhos de sobreviventes como Fujiko e Okada se cruzam devido à iniciativa de outro conterrâneo, Takashi Morita, 81 anos, que em 1984 fundou em São Paulo a Associação das Vítimas da Bomba Atômica no Brasil, com 17 associados. Hoje são 134. Policial, Morita chegou a Hiroshima, vindo de Tóquio, uma semana antes de o cogumelo atômico marcar a cidade para sempre. Com um grupo de colegas, estava a 1.300 metros do marco zero. Na Hiroshima do pós-guerra, Morita montou uma loja de relógios próxima a uma farmácia da família de Ayako, com quem se casou e teve dois filhos – Yasuko e Tetsuji.

Memória –

Quando se aposentou, depois de 28 anos de trabalho no Brasil, Morita pediu o apoio da família para dedicar-se a reunir os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, onde caiu a segunda bomba atômica, em 9 de agosto de 1945. Como precisava continuar trabalhando para complementar a renda, Morita montou um comércio de alimentos japoneses. A simpática mercearia é ainda a sede da associação. Na ausência do casal, que está no Japão por conta dos 60 anos da bomba, o comando fica a cargo da filha, a historiadora Yasuko Saito, 58 anos. Na semana passada, ela também divulgava a exposição

Hiroshima – testemunhas e diálogos

, no Museu de Arte Contemporânea da USP, em São Paulo, até 9 de outubro.

“Os sobreviventes querem que Hiroshima não seja esquecida, para que não aconteça de novo”, ressalta Yasuko. “Lutam também para que o governo japonês ofereça tratamento às vítimas radicadas no Brasil.” Os efeitos da radiação são um fantasma na trajetória dos sobreviventes. Fujiko Masumoto, que fez em março seu primeiro check-up em Hiroshima, perdeu uma filha há 32 anos, com leucemia. Takashi e Ayako Morita, que assumiram todos os riscos ao conceberem Yasuko um ano após a explosão, passaram grandes aflições quando os netos começaram a nascer, há 28 anos. Felizmente, nenhum deles nasceu com marcas da radioatividade. As seqüelas emocionais são outra história.