São imponderáveis os efeitos políticos das denúncias de corrupção expostas pela crise que sacode o governo e o Congresso. Nos corredores de Brasília, as especulações para o curto prazo se concentram no alcance das punições, cassações e renúncias sorrateiras. A sucessão de 2006 foi antecipada e o próprio presidente Lula, em discurso enfático, levou a reeleição para o palanque ao se apresentar como invencível. No PMDB, o ex-governador Anthony Garotinho (RJ) e o governador Germano Rigotto (RS) aceleram seus movimentos e o PSDB avalia as chances de seus nomes mais vistosos, os governadores Geraldo Alckmin (SP) e Aécio Neves (MG), o prefeito de São Paulo, José Serra, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas a exposição das vísceras da República pode produzir conseqüências muito mais profundas do que o confronto imediato nas CPIs e nas urnas. Especialistas e observadores do sistema eleitoral tiram lições valiosas da crise para redesenhar o futuro e aperfeiçoar a democracia brasileira – um raro momento que a história oferece ao País para a gestação de uma reforma política.

Um mês é insuficiente para que o projeto de reforma aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) seja votado pelo Congresso em tempo de regular as eleições de 2006. São profundas as divergências sobre temas centrais e, para vigorar nas próximas eleições, qualquer alteração nas regras do jogo deve ocorrer um ano antes. É possível, no entanto, aproveitar alguns pontos consensuais entre as lideranças para fortalecer o sistema partidário e inibir, desde já, o financiamento obscuro do voto. Entre as idéias mais polêmicas estão o financiamento público das campanhas, o voto distrital misto e as listas fechadas de candidatos ao Legislativo. O debate Reforma política e os rumos da República, promovido na sucursal de ISTOÉ no Rio de Janeiro na quinta-feira 4, evidenciou a expectativa de que o Congresso Nacional providencie ainda este mês alguns curativos para começar a livrar o sistema eleitoral de certos males que têm chocado os eleitores. Não basta demitir os atores, é preciso reformar o teatro.

Fidelidade – Poucas medidas seriam capazes de produzir consenso no Congresso em um ambiente de tanta beligerância. Uma delas é a imposição da fidelidade partidária para inibir o troca-troca e fortalecer a vocação programática das legendas. Outra mudança simples seria proibir a contribuição de empresas para as campanhas. Essas foram algumas das idéias discutidas pelos cinco convidados para o debate na ISTOÉ: o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, o presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira, o senador e procurador Demóstenes Torres (PFL-GO) e os cientistas políticos Otávio Amorim Filho, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Fabiano Santos, do Instituto de Pesquisa Universitária do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj).

A julgar pelo alto grau de preocupação com o financiamento eleitoral, está aí o calcanhar-de-aquiles da política brasileira. O projeto aprovado na CCJ prevê que as campanhas sejam sustentadas exclusivamente por recursos públicos, reduzindo o peso do poder econômico e as desigualdades que ele produz na competição. Não é à toa que o sistema foi adotado nos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Argentina, México, Portugal e Rússia, entre outros. Pelos cálculos iniciais, sua implementação no Brasil acarretaria uma despesa média de R$ 7 por eleitor. O tempo parece curto demais para o eleitorado se convencer de que essa despesa seria bem menor do que os recursos públicos desviados pela corrupção para que os eleitos retribuam, geralmente com contratos superfaturados, a generosidade dos financiadores. O outro desafio seria garantir ao eleitor – com motivos de sobra para desconfiar de tudo e de todos – que a medida eliminaria as doações ilegais em um país sem fiscalização. O projeto prevê a cassação do mandato para quem as recebe e a proibição de as empresas financiadoras firmarem contratos com o poder público.

Campanhas – O financiamento eleitoral
tem concentrado as atenções nos debates
sobre a reforma, mas está longe de ser uma questão original. Em 1981, o então deputado Edson Vidigal apresentou um projeto criando tetos para a doação de pessoas físicas, que acabou arquivado. Os defensores do financiamento público admitem a conveniência da permissão para as doações de pessoas físicas como forma de estreitar os laços entre representante e representado. A doação teria um limite e não poderia ser feita por pessoas jurídicas. O presidente da Firjan conheceu o sistema na França e se entusiasmou. “É mais democrático e diminui a vergonha das campanhas. Por que precisamos de produções milionárias se os candidatos já têm espaço na tevê?”, questiona. Para Gouvêa Vieira, “deveríamos aproveitar esta crise para redesenhar o País”.

O ministro Edson Vidigal defende que as doações sejam depositadas em contas abertas dos candidatos, às quais qualquer um teria acesso. O doador poderia abater 50% do Imposto de Renda, “um incentivo fiscal para a democracia”. Vidigal encaminhou sua proposta, em junho de 1986, ao Conselho Político da Presidência e também nas eleições para a Constituinte, em vão. Ele prega a redução do número de deputados e senadores e lança uma polêmica: como ninguém legisla contra seus próprios interesses, o projeto da reforma política deveria chegar ao Congresso como uma emenda popular. “A reforma política é para anteontem, mas só acredito em reforma política a partir de propostas da sociedade civil organizada. E isso tem que ser enfiado goela adentro do Congresso Nacional. Se vier amadurecida e respaldada por milhões de assinaturas, a coisa fica diferente. A sociedade tem o direito constitucional de intervir no Congresso”, afirma.

Aparentemente, uma emenda popular deixaria acuada a elite política que se beneficia das regras atuais, mas como esperar que a sociedade construa um consenso nacional que seus representantes não conseguem formular? Outro problema, como ressalta Otávio Amorim Neto, é que a complexidade da reforma, vinda ou não das ruas, requer muitas negociações entre partidos. “Ela jamais será perfeita porque sempre levará em conta a correlação de forças no Congresso”, contextualiza. Se a reforma não pode vir do povo e o Congresso não aprecia o texto da CCJ, fica difícil livrar o Brasil do que Amorim classifica como “patologias do sistema político”: distorções de representação nas coligações, excessiva fragmentação partidária, debilidade organizacional e programática das legendas, corrupção no financiamento das campanhas e “amesquinhamento e desprestígio radical do Congresso”.

Mesmo os especialistas mais afinados com o texto da CCJ, como Amorim e o senador Demóstenes Torres, estão céticos. A combinação da necessidade de aprovar qualquer alteração nas regras um ano antes das eleições com a tradição brasileira de deixar tudo para a última hora, principalmente os problemas mais cabeludos, pode eternizar os entraves ao bom funcionamento do sistema democrático. Decidir se o financiamento deve ser público ou se as atuais regras – ou a falta delas – continuarão parindo tesoureiros como Delúbio Soares não é o único desafio à montagem de um sistema confiável. O projeto da CCJ apresenta outros pontos cruciais que suas excelências não demonstram disposição para avaliar. A lista fechada nas eleições proporcionais é um deles.

Candidatos – “Foi uma grande coragem da CCJ instituir a lista fechada”, elogia Amorim. A lista fechada é considerada fundamental para a adoção do financiamento público, já que a administração dos recursos ficaria a cargo do partido, e não pulverizada pelos candidatos. Nesse sistema, o partido apresenta sua relação de candidatos e o eleitor vota na lista inteira, cabendo ao partido estabelecer a ordem dos que ocuparão as cadeiras conquistadas pela legenda. A dúvida é se a lista fechada, que espanta os aventureiros, enfraquece ou fortalece o elo entre votante e votado, aparentemente valorizado no sistema atual, de lista aberta. O senador Demóstenes defende a mudança com contundência. “Só 5% dos deputados atuais atingiram o quociente eleitoral, o resto foi eleito nas costas do outro. Quem votou no Enéas Carneiro (Prona-SP) elegeu junto quatro deputados, um deles com mil e poucos votos. Sem lista fechada não há financiamento público e sem financiamento público vamos continuar tendo caixa 2, o mal de tudo que está aí, e o próximo presidente certamente terá um novo PC Farias ou Delúbio por trás dele.”

Não há dúvida de que os prejuízos da sociedade com a corrupção seriam reduzidos quando as campanhas tivessem realmente doadores e não mais investidores interessados no retorno com juros e correção, como diz o senador. É fundamental moralizar o quadro partidário, o que, para Demóstenes, pressupõe a eliminação de uma “prostituição radical”: a proliferação de legendas criadas só para negociar cargos e aumentar o tempo na tevê dos grandes partidos nas coligações. Com o conhecimento de procurador eleitoral, o senador considera impossível a fiscalização dos gastos de campanha se a prestação de contas continuar sendo feita pelos candidatos e não pelos partidos. Ele também discorda da iniciativa popular para encaminhar um projeto de reforma política. “Não é o Congresso que está apodrecido, são alguns de seus membros.”

Legendas – Refratário às principais inovações em pauta, Fabiano Santos pondera que “a reforma não é condição para resolver os problemas postos pela crise atual nem tem capacidade para aumentar o civismo ou o republicanismo dos atores políticos”. No bom português, o que falta não é lei, mas vergonha na cara. Fabiano não concorda com a generalização de que os pequenos partidos são legendas de aluguel. “Não faz justiça a uma série de pequenos partidos que contribuem para o processo democrático, tanto que a proposta do CCJ prevê a federação de partidos”. A idéia de convocação de uma assembléia constituinte para enxugar a Carta brasileira, apoiada pelo ministro Edson Vidigal, também é criticada por Fabiano. “Num contexto em que tudo parece uma grande lama, é fácil falar em fazer uma nova Constituinte, para que daqui a cinco anos surja um novo escândalo e precisemos de outra.”

A adoção de mecanismos para exigir a fidelidade partidária e a proibição de coligações nas eleições proporcionais, segundo Fabiano, já seriam suficientes, por ora, para limpar as imperfeições do sistema representativo. Não seria necessário nem mesmo a adoção da cláusula de barreira para reduzir o número de partidos, já que existe a exigência do quociente eleitoral. Ao justificar sua ojeriza pelo financiamento público, o cientista político do Iuperj toca no coração ideológico da proposta: o Brasil optou pelo sistema capitalista e “a convivência entre capitalismo e democracia deve ser reproduzida no sistema eleitoral”. A grande questão é que a sociedade capitalista pressupõe a existência de trabalhadores, que têm dificuldades em eleger seus representantes em uma competição na qual o dinheiro ganhou peso determinante. “Aqui, as relações de capitalismo e democracia são complicadas porque há uma influência excessiva do poder econômico, uma plutocracia corrompendo o sistema. São pouquíssimos indivíduos com influência desproporcional sobre o processo decisório”, ressalta Otávio Amorim. Ele concorda que o financiamento público exclusivo, que praticamente não existe no Ocidente, seria um excesso e que deve ser liberada a doação de pessoas físicas, mas não de empresas. Com conhecimento de causa, o presidente da Firjan reforça: “O cidadão é patriota, mas as empresas não, elas têm o objetivo de ganhar dinheiro. Se as doações forem só de pessoas físicas, não haverá essa exacerbação de gastos.”

É certo que a fragilidade da Justiça Eleitoral, sem condições de fiscalizar o cumprimento das leis atuais, dificulta fechar os ralos que drenam o dinheiro público para o bolso de corruptos e corruptores. Sem eliminar este gargalo, não é razoável acreditar que novas leis possam solucionar os problemas do sistema representativo no Brasil. Mas esperar que a Justiça funcione bem em um sistema tão permissivo como o atual parece ainda mais ingênuo do que tentar fechar as brechas pelas quais entram e saem personagens que o País pensou ter deletado há 13 anos, na esteira do impeachment de Fernando Collor.