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RESTOS
Moradores de Palmares recolhem alimentos enlameados de um supermercado inundado

É preciso força e coragem para caminhar pelas ruas da cidade de Palmares, Zona da Mata Sul de Pernambuco. A lama grossa e imunda invade, com um cheiro fétido, todos os caminhos por onde antes trafegavam pessoas e veículos. Em cada canto se ouvem histórias de quem perdeu tudo. Relatos de dor, drama, vazio e desânimo. Por todo o centro da cidade e nas ruas mais afetadas pelas águas do rio Una, a sensação é de se estar num verdadeiro lixão. Em casas cheias de sujeira e entulhos, as pessoas tentam limpar as poucas coisas que não foram destruídas ou levadas pelas águas. Em condições desumanas e correndo sérios riscos de contraírem doenças, os palmarenses lutam como podem. Muitas vezes, tratam de fazer a limpeza com as próprias mãos, já que faltam equipamentos adequados. Precariamente, buscam retomar suas rotinas. Mas é difícil saber por onde começar. “Isso aqui não é uma cidade, isso aqui é o inferno”, grita um morador de dentro de uma casinha. O inferno também ameaça trazer a fome. Já chegam a Palmares notícias de localidades onde os moradores só têm barro para comer. Ali, ninguém duvida: a luta pela vida está apenas começando. 

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SORRISO
Cleiton, 5 anos, e a mãe, Ediane. Eles dizem que perderam tudo, menos a esperança

Com 54 mil habitantes e apenas oito abrigos para atender toda a população, Palmares tem mais de cinco mil desabrigados e desalojados – em todo o Estado, cerca de 82 mil pessoas estão fora de suas casas. Segundo a Defesa Civil, mais de 14 mil moradias foram danificadas ou destruídas pelas enchentes que assolaram Pernambuco no dia 18 de junho. A casa simples de Lindalva da Silva Santos, 79 anos, foi uma delas. Aposentada, Lindalva conta que sobreviveu com o marido em cima de um telhado. “Pensavam que a gente tinha morrido. Não nos sobrou nada, só uns paninhos sujos.” Há mais de duas semanas, ela vive em condições de penúria absoluta: sem cama, fogão, comida, sofrendo com o frio, a umidade, a lama e o cheiro de esgoto constante. “Quando dão comida, comemos. Quando não… Não tenho lugar algum para onde possa ir. Como os abrigos estão muito lotados, prefiro ficar dentro da lama mesmo”, diz Lindalva. É impossível para ela pensar em futuro: “Hoje estou feliz porque ganhei um cobertor para dormir e porque comi. Mas só Deus é quem sabe como vai ser esse recomeço e o que vai ser de Palmares”, diz. Na desolação completa da cidade, o menino Cleiton Silva, 5 anos, ainda abre seu maior sorriso ao lado da mãe, Ediane Maria da Silva. Morador de um dos bairros mais pobres de Palmares, ele brinca, em meio à sujeira, enquanto Ediane se lamenta: “Já não tinha nada mesmo em casa. Agora, o pouco que tinha não existe mais. Tudo o que fa­ço é retirar a lama que ficou”, conta ela.

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Depois da enchente, a falta de perspectivas é parte da segunda tragédia que desaba sobre o povo dali. Sem indústrias, Palmares, que vivia de comércio, teve mais de 1500 lojas destruídas. Agora teme também o desemprego. O comerciante Jorge Santos Corrêa perdeu as cinco lojas de celular que possuía e ainda viu o pouco da mercadoria que sobrou ser saqueada. “A cheia afetou todo mundo. Meu prejuízo é de mais de R$ 1,5 milhão”, calcula. Com dez anos investidos no comércio local, Corrêa não imagina como poderá manter seus 80 funcionários. “Quem ainda pode comprar vai comprar comida. Ninguém vai pensar em celular.” Situação parecida é enfrentada pelo empresário Hildo Braz, dono de uma rede de supermercados e de atacados de construção. Ele mantém 240 funcionários e estima ter perdido mais de R$ 4,5 milhões. “Acho que terei que fazer acordo e demitir mais de 40 empregados, não sei o que fazer.” Outro comerciante, Hosano Marques, um dos mais antigos e tradicionais da cidade, lamenta que, em apenas um dia, viu todo o seu trabalho de mais de 35 anos desaparecer. “Não sobrou nem a esperança”, diz, emocionado.  

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RESTOS
Em União dos Palmares (acima), à procura de roupas.
Em Palmares (abaixo), juiz Evani Estevão mostra processos destruídos

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O juiz da 1ª Vara Cível de Palmares, Evani Estevão, contabiliza outro tipo de prejuízo: a quantidade de processos perdidos pela inundação do fórum da cidade. Com mais de 20 anos atuando nessa região, ele chora ao olhar o cartório de registro civil e o cartório de registro de imóveis completamente destruídos. “Os danos são imensos. Não possuímos um acervo digital e todos os processos e documentos ficaram submersos. É um caos absoluto.” A exemplo de tanta gente da cidade, ele diz não saber como recomeçar. Pessoalmente, Estevão também viveu um drama: ficou, com a família, ilhado, por mais de 36 horas. “A água estava pela cintura e, quando vi que subia cada vez mais, me desesperei.Chegamos a pensar em nos jogar nas águas do rio. Agora entendo o que é o pânico, o que é o terror”, relata. Estevão já decidiu abandonar a cidade: “Vou me aposentar. Não posso mais continuar em Palmares. Não há clima, só dor”, diz ele. 

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FALTA TUDO
Em Barreiros (acima) meninos catam comida.
Em União dos Palmares (abaixo) não há água nem luz

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Na vizinha Alagoas, a 130 quilômetros de Palmares, num município de nome parecido, União dos Palmares, o cenário é diferente. Em vez da lama que se vê pelas ruas de Palmares, na cidade alagoana há um grande vazio. União dos Palmares está no chão. Ali mais de mil casas foram devastadas. Sobraram apenas tijolos espalhados pelas ruelas. Maria da Conceição Araújo, 98 anos, moradora da cidade há mais de 50, já teve uma casa no meio daquele nada. Nunca em sua vida tinha visto coisa parecida com o que aconteceu. “Parecia o fim do mundo”, diz ela. “Agora, com a minha idade, só espero morrer.” Maria da Conceição passa o tempo observando antigos vizinhos que vasculham os escombros. “Estamos procurando roupas para lavar e vestir”, explica Quitéria da Conceição. “A ajuda chega, mas é pouca.” Quando aconteceu a cheia, Quitéria voltava de um velório e não teve tempo de salvar nada da casa. “Agora eu como um dia, no outro não.”

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DESOLAÇÃO
Maria da Conceição Araújo, 98 anos, espera ajuda

Na cidade alagoana de Murici, bombeiros resgataram de helicóptero cerca de 150 sem-terra. A maioria era de crianças, isoladas há mais de uma semana. Segundo os bombeiros, eles comiam barro para sobreviver. As águas do rio Mundaú também arrasaram a vida da dona de casa Sebastiana Henrique de Aguiar, que vivia com o marido e oito filhos num povoado próximo à Usina Laginha. Dois moradores morreram no local, um dos mais afetados pela calamidade. “Foi muita água. Parecia um dilúvio”, lembra ela. Sebastiana, como muita gente ali, não sabe bem o que fazer. Só lhe restou a fé: “Preciso ter fé em Deus. Preciso acreditar. Já perdi tudo o que tinha e agora não posso deixar ir embora esta última coisa.”

82 mil pessoas estão fora de suas casas em Pernambuco.
Segundo a Defesa Civil, mais de 14 mil moradias foram danificadas ou destruídas

A árvore dos desesperados

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Duas jaqueiras e uma mangueira foi tudo o que tiveram mais de 60 pessoas para escapar das enchentes. Isto aconteceu em Muquém, um povoado vizinho à cidade de União dos Palmares, em Alagoas. Já era noite quando as águas do rio Mundaú assolaram Muquém, impedindo mais de 500 pessoas de sair de lá. Um grupo ficou ilhado num terreno amplo onde só havia as três árvores. “Nossa sorte foi este pé de planta”, diz José Cícero da Silva, um dos primeiros a subir na jaqueira maior (foto ao lado). Outros moradores foram seguindo seu exemplo e, em pouco tempo, a árvore ficou “lotada”. Com a correnteza cada vez mais forte, a outra jaqueira e a mangueira do terreno também começaram a ser disputadas pelos moradores. Eles permaneceram em cima das árvores por mais de sete horas, sem receber nenhuma ajuda.

Michele Pereira da Silva, outra moradora de Muquém, conta que em vários momentos pensou em desistir. Chegou a acreditar que não sairia viva dali. “Teve uma hora em que não senti mais as minhas pernas nem os meus braços. Sempre que o ar me faltava eu rezava e todos me seguiam. Dessa forma a gente renovava junto nossas forças”, relata. Emocionada, Michele afirma ainda que jamais deixará alguém derrubar a árvore que salvou não só a vida dela como a de muitas pessoas da comunidade. “De agora em diante, quem derrubar a jaqueira vai ser preso”, sentencia.