img1.jpg
PARA TURISTAS
Réplica de esqueleto instalada na caverna de Gough, na Inglaterra

Cientistas ingleses descobriram mais uma evidência de que a ingestão de carne humana por parte de nossos semelhantes é um comportamento quase tão antigo quanto o próprio homem. Longe de ser exclusividade de tribos como os tupinambás do Brasil pré-colonial ou dos povos maias e astecas, as novas evidências mostram que houve canibalismo entre os primeiros humanos que recolonizaram a Grã-Bretanha ao fim da última era do gelo, há 14.700 anos.

Grupos de caçadores-coletores, vindos da França e da Espanha, ocuparam a região depois que uma onda de aquecimento global pôs fim a esse período de frio extremo. Alguns indivíduos se abrigaram na caverna Gough, no desfiladeiro da vila de Cheddar, na Inglaterra. A partir dos ossos encontrados ali, os cientistas concluíram que os ancestrais dos britânicos contemporâneos usaram técnicas sofisticadas para separar carne e ossos de homens, mulheres e crianças antes do preparo de suas refeições.

“Os cortes em restos humanos e de outros animais são similares”
Silvia Bello, arqueóloga italiana

“Os cortes e as ferramentas usadas em restos humanos e de outros animais são similares, o que confirma a hipótese de canibalismo”, diz a pesquisadora italiana Silvia Bello, do Museu de História Natural de Londres, uma das autoras do estudo. A arqueóloga conta que os ossos possuem marcas que indicam que seus donos foram alvo de um procedimento igual ao usado em animais. Todos os músculos e tecidos foram retirados meticulosamente. Medulas, cérebros e línguas também foram removidos, o que revela um trabalho sistemático e organizado.

Tamanha precisão de detalhes só foi possível graças a dois avanços tecnológicos. Até agora, os arqueólogos usavam microscópios que mostravam imagens em duas dimensões para analisar marcas em ossos. Um novo equipamento, o Alicona 3D, mostra os objetos tridimensionais. “Essa tecnologia revela variações verticais na superfície da estrutura”, diz Silvia. “Por isso, ela pode ser usada para interpretar diferenças no impacto causado por diversos tipos de ferramentas e técnicas de corte”, completa a arqueóloga.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O segundo salto técnico se deu na datação dos restos mortais. O novo procedimento, desenvolvido na Universidade de Oxford, também na Inglaterra, usa ultrafiltragem de carbono. Ela consegue determinar a idade de ossos e outros materiais orgânicos ancestrais com precisão inédita. Estudos anteriores já haviam sugerido a ocorrência de antropofagia – o termo preciso para definir o canibalismo entre humanos – na caverna britânica, mas apenas com esses últimos avanços foi possível embasar a teoria de forma definitiva.

img.jpg
INDÍCIO
Marcas revelam que o crânio foi aberto com ferramentas

Por outro lado, explicar os porquês da prática é algo muito mais complicado. A história apresenta uma série de justificativas (leia o quadro abaixo). No caso britânico, uma das hipóteses plausíveis seria algum tipo de ritual funerário. Ingerir pedaços de um parente morto seria um ato de respeito, e não uma mera questão alimentar. As evidências indicam que as ferramentas usadas pelos canibais ingleses – exatamente as mesmas utilizadas para esquartejar cavalos e cervos – destrincharam humanos já mortos, muito provavelmente por causas naturais. Não há fraturas nos restos mortais encontrados na caverna Gough capazes de sugerir o uso de violência com a intenção de abater humanos vivos, diferentemente do que ocorre com os restos de outros animais.

Outro motivo levantado para esse caso de antropofagia seria a escassez de alimentos na região durante o final da última era do gelo. “Apesar de o clima ser relativamente agradável, ele era muito instável”, explica Silvia. “Um duro inverno poderia ter levado aquele grupo de indivíduos a comer o que estava disponível – inclusive seus semelhantes”, afirma a pesquisadora. Além disso, há a hipótese do chamado canibalismo homicida – teoria segundo a qual alguns humanos caçam, matam e comem uns aos outros por preferirem carne de gente a qualquer outra. Os célebres casos de canibais contemporâneos ou da ficção, como o terrível Hannibal Lecter, ilustram o raciocínio à perfeição.

Embora só agora seja possível dizer com propriedade que tenha havido canibalismo entre os ancestrais dos ingleses, fraturas parecidas foram encontradas em restos humanos em sítios arqueológicos na França, na Alemanha e na Espanha. A julgar pelo contexto em que viviam, porém, não se pode julgar se aquelas pessoas eram mais ou menos cruéis do que nós. No livro “Dos Canibais”, o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) levanta a questão ao citar os índios brasileiros que devoravam seus inimigos. Ao perceberem que os portugueses enterravam os oponentes até a cintura e os perfuravam com flechas – para depois enforcá-los –, acharam que os colonizadores vinham de outro mundo. “Não tomaram como importuna essa espécie de vingança: julgando-a mais cruel que a deles, foram deixando o antigo costume para adotá-la.”

G_Canibal.jpg


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias