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Bem antes de o jornalista italiano Roberto Saviano se tornar um desafeto da máfia napolitana, outro escritor peninsular teve a mesma ousadia e desnudou em 1961 a violência do crime organizado. Foi o autor siciliano Leonardo Sciascia, cujo livro “O Dia da Coruja” (Alfaguara) tratou pela primeira vez do assunto na Itália. O thriller mostra as investigações de um crime numa pequena cidade da Sicília, encabeçadas por um policial “mão limpa”que não se deixa intimidar pela máfia.

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Leia trecho do livro “O Dia da Coruja”, de Leonardo Sciascia

O ônibus estava para sair e roncava surdo, com arrancos e soluços repentinos. A praça estava silenciosa no amanhecer cinzento, fios de névoa nos campanários da Matriz. Só o ronco do ônibus e a voz do vendedor de panelle*, implorante e irônica: panelle, panelle quentes. O trocador fechou a porta, o ônibus se moveu com um barulho de lata velha. Girando os olhos pela praça uma última vez, o trocador viu o homem vestido de escuro que chegava correndo e disse ao motorista: espere!, e abriu a porta com o ônibus ainda em movimento.
Ouviram-se dois disparos secos: o homem vestido de escuro, prestes a apoiar-se no primeiro degrau, ficou um segundo suspenso, como se uma mão invisível o segurasse pelos cabelos; a pasta caiu de sua mão e sobre a pasta, lentamente, ele desmoronou.
O trocador praguejou; sua cara ganhou um tom sulfúrico e ele tremia. O vendedor de panelle, que estava a três metros do homem caído, começou a se afastar, recuando como um caranguejo em direção à porta da igreja. No ônibus, ninguém se mexeu, o motorista parecia feito de pedra, a direita no freio, a esquerda no volante. O trocador encarou todos aqueles rostos, que pareciam rostos de cegos, e sem olhar disse: está morto. Tirou o chapéu e começou a passar a mão pelos cabelos freneticamente; praguejou de novo.
— A polícia — disse o motorista —, temos que chamar a polícia.
Levantou e abriu a porta. — Eu vou — disse ao trocador.
O trocador olhava para o morto e depois para os passageiros. Também havia mulheres no ônibus, velhas que toda manhã carregavam pesadíssimos sacos de tecido branco e cestos cheios de ovos; suas roupas exalavam um cheiro de feno, de estrebaria, de madeira queimada; em geral, reclamavam e praguejavam. Agora estavam em silêncio, seus rostos pareciam desenterrados de um silêncio de séculos.
— Quem é? — perguntou o trocador, apontando o morto.
Ninguém respondeu. O trocador praguejou, suas blasfêmias eram famosas entre os passageiros daquela linha: blasfemava com capricho e já tinha sido ameaçado de demissão, pois seu vício de praguejar era tão forte que não fazia caso nem da presença de padres ou freiras no ônibus. Era da província de Siracusa, tinha pouca prática em histórias de mortos assassinados: província besta, essa de Siracusa… E por isso, praguejava com mais fúria ainda.
Chegaram os carabineiros e o sargento, escuro de barba e roxo de sono. A chegada dos policiais explodiu como um alarme sobre a letargia dos passageiros e, por trás do trocador, pela porta que o motorista tinha deixado aberta, começaram a descer. Como quem não quer nada, virando para trás como se calculassem a distância certa para admirar os campanários, afastavam-se para as bordas da praça e, depois de um último olhar, debandavam. O sargento e os carabineiros nem se deram conta daquele lento leque em fuga. Ao redor do morto havia agora umas cinquenta pessoas, os operários de um canteiro-escola, que nem acreditavam na inesperada aparição daquele excelente tema para animar suas oito horas de ócio. O sargento ordenou aos carabineiros que evacuassem a praça e trouxessem os passageiros de volta para o ônibus. E os policiais começaram a empurrar os curiosos para as ruas que se abriam ao redor da praça: empurravam e pediam aos passageiros que retornassem a seus lugares no ônibus. Quando a praça ficou vazia, vazio também permanecia o ônibus; só restaram o motorista e o trocador.
— E então — perguntou o sargento ao motorista —, nenhum passageiro hoje?
— Tinha alguns — respondeu o motorista com cara de quem não lembra.
— Alguns — disse o sargento —, quer dizer quatro ou cinco pessoas: nunca vi esse ônibus sair com um único lugar vazio.
— Não sei — disse o motorista, espremendo- se no esforço de recordar. — Não sei, não sei; é só um modo de dizer, com certeza não eram cinco ou seis, eram mais, talvez o ônibus estivesse mesmo cheio… Nunca olho quanta gente tem: sento no meu lugar e vamos embora… Só olho para a rua na minha frente, sou pago para olhar para a frente.
O sargento passou pelo rosto a mão retesada de nervos. — Entendi — disse. — Só olha para a frente; mas e você? — e virou-se furioso para o trocador. — Você entrega os bilhetes, pega o dinheiro, dá o troco: tem que contar as pessoas e olhá-las no rosto… E se não quiser que eu trate de ajudá-lo a lembrar na cela de segurança, vai me dizer agora mesmo quem estava nesse ônibus, preciso de pelo menos dez nomes… Trabalha nessa linha há três anos, há três anos vejo você no café Itália todo fim de tarde: conhece essa cidade melhor que eu.
— Melhor que o senhor ninguém conhece essa cidade — disse o trocador sorrindo, como se quisesse se proteger do elogio.
— Certo — sorriu cáustico o sargento —, eu em primeiro, você depois: tudo bem… Só que eu não estava no ônibus e, se estivesse, lembraria dos passageiros um por um: portanto, é com você.
Tem que me dar pelo menos dez nomes.
— Não me lembro — disse o trocador —, pela alma de minha mãe, não me lembro. Não consigo lembrar de nada agora, é como se eu estivesse sonhando.
— Pois pode acreditar que vou acordá-lo
— enfureceu-se o sargento. — Uns dois anos de cadeia e vai ficar bem acordado… — mas interrompeu-se para ir ao encontro do juiz de alçada que estava chegando. E enquanto fazia seu relatório sobre a identidade do morto e a fuga dos passageiros, passando os olhos pelo ônibus teve a sensação de que alguma coisa estava fora do lugar ou faltando: como alguma coisa que falta de repente dentro da nossa rotina, uma coisa que por uso ou costume é captada pelos sentidos, mas nem chega mais à mente e cuja ausência gera um pequeno vazio, um branco, como uma intermitência de luz que nos exaspera: até que, num estalo, a mente percebe o que é.
— Tem alguma coisa faltando — disse o sargento ao carabineiro Sposito, que, com seu diploma de contador, era o sustentáculo da Estação de Carabineiros de S. —, alguma coisa ou alguém…
— O vendedor de panelle — disse o carabineiro Sposito.
— Benza Deus: o vendedor de panelle! — exultou o sargento, pensando que as escolas pátrias
“não iam mesmo dar um diploma de contador ao primeiro que aparecesse”.
Outro policial foi designado para trazer o vendedor sem perda de tempo: sabia onde encontrá-lo, pois quase sempre ia vender seus bolinhos na entrada das escolas elementares, depois da partida do ônibus. Dez minutos depois, o sargento tinha diante de si o vendedor de panelle, com a cara de um homem surpreendido no sono dos justos.
— Ele estava aqui? — perguntou o sargento ao trocador, indicando o vendedor.
— Estava — disse o trocador olhando para os sapatos.
— Então — disse o sargento com uma doçura paternal —, hoje de manhã, como sempre, você veio vender suas panelle: o primeiro ônibus para Palermo, como sempre…
— Tenho licença — disse o vendedor.
— Eu sei — disse o sargento, erguendo para o céu uns olhos que pediam paciência —, sei e não quero saber de licença; só quero saber de uma coisa, basta me dizer e poderá ir vender seus bolinhos para as crianças: quem atirou?
— Por quê? — perguntou o vendedor, espantado e curioso. — Alguém atirou?

* Panelle siciliane: bolinhos fritos à base de farinha de grão-de–bico, água, sal e pimenta-do-reino. (N. da T.)