"Você foi um adversário leal.” Foi o que ouviu José Serra em outubro de 2002, ao telefonar para Luiz Inácio Lula da Silva, que o chamava de “querido”. Lula, sem saber, desferiu o maior dos elogios ao adversário. Perguntado sobre a qualidade que mais admira em uma pessoa, Serra responde: “A lealdade.” É na adversidade que mais cresce este economista de 62 anos – que será, a partir de 1º de janeiro, o 59º prefeito de São Paulo, a megalópolis de dez milhões de habitantes. “Alguns amigos acham que sou melhor nas adversidades do que na prosperidade. Aceitar um desafio é minha especialidade”, conta. O amigo Aloysio Nunes Ferreira, ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso, observa: “É impressionante a sua capacidade de transformar idéias em prática.” Fanático por cinema, Serra entrou no palco da política pelas portas do teatro. Foi o ator principal da peça Vento forte para papagaio subir, de José Celso Martinez, nos anos 60, quando cursava engenharia na USP e participava do grupo de teatro da faculdade.

Foi encenando que o rapaz conseguiu disfarçar a timidez. Dali saltou para os palanques políticos do movimento estudantil: foi o último presidente da União Nacional dos Estudantes antes do golpe militar, há 40 anos, quando a UNE tinha status de partido. Aos 21 anos, Serra já dividia palanques com políticos de proa, como o então presidente João Goulart. “Há generais loucos atrás de ti. Eu é que não deixo eles te fazerem mal”, comentou Goulart, como lembra Serra no livro O sonhador que faz, do jornalista Teodomiro Braga. Nascido no bairro operário da Mooca, em São Paulo – filho do vendedor de frutas calabrês Francisco Serra, já falecido, e de Serafina –, Serra vivia no Rio de Janeiro, quando teve que se refugiar no consulado da Bolívia, em 1964. O general Costa e Silva comentara com os bolivianos: “Este não deixaremos ir embora. É muito perigoso.”

Mas Serra já era osso duro de roer. Tinha 22 anos quando fugiu para o exílio. Longe do Brasil, ficou deprimido. “Tomei o primeiro e último pileque (de pisco) na vida”, conta. Da Bolívia, rumou para a França, voltou ao Brasil em 1965 – quando escondeu-se na casa da atriz Beatriz Segall –, mas teve que partir de novo. Foi para o Chile, onde conheceu vários outros exilados, como o atual prefeito do Rio, Cesar Maia, a quem aconselhou estudar economia. Casou com Mônica Allende, que dançava no Ballet Nacional do Chile. Depois dos livros e do cinema, o balé e o futebol são as grandes paixões deste palmeirense roxo, leitor voraz de Machado de Assis e Fyódor Dostoiévsky.

Os filhos nasceram no Chile: Verônica, em 1969, e Luciano, em 1973. Em setembro daquele ano, Serra enfrentava o seu segundo golpe militar: o que derrubou o socialista Salvador Allende. “Algumas pessoas se destacaram por levar, em várias oportunidades, companheiros até a embaixada (do Panamá). Uma delas, o ex-presidente da UNE José Serra, que muitas vezes se arriscou para salvar a vida de refugiados que transportava até o local”, lembrou um deles, Leopoldo Paulino, no livro Tempo de resistência, lançado em 1998. Luciano tinha três meses quando Serra foi preso no aeroporto de Santiago, ao tentar fugir do país com a família, que ficou na capital. “Aqui dice que usted es un subversivo, un agitador y un intelectual muy vivo”, disse o policial. Serra foi levado para o Estádio Nacional, onde milhares foram torturados e mortos. O major que decidiu liberá-lo acabou sendo fuzilado dias depois. Refugiou-se na embaixada da Itália e partiu para os Estados Unidos, onde se doutorou em economia pela Universidade de Cornell. Voltou ao Brasil em 1978, após 14 anos de exílio. Professor de economia da Unicamp, em 1983 assumiu a mais importante pasta do governador Franco Montoro: a Secretaria de Economia e Planejamento. Foi sua estréia no cenário em que mais gosta de atuar: o Executivo.

Lá, ganhou fama de saneador. A partir dali ganhou muitas outras famas e tornou-se alvo de folclores. A lista é imensa: hipocondríaco, notívago, trabalhador, pão-duro, mal-humorado, pavio-curto, impaciente, obcecado, antipático, detalhista, centralizador, competente, e por aí vai. “O meu humor em geral melhora ao longo do dia. O ponto melhor é quando a luz do dia começa a ir embora”, contou no livro O sonhador que faz. Outra fama é a de que costuma telefonar para os outros de madrugada. “Há um pouco de folclore sobre isso. Ao longo dos últimos anos corrigi os raros excessos”, justifica-se. Admite algumas, como a impaciência, “especialmente quando as coisas vão devagar”. Alvo de inúmeras brincadeiras dos amigos, como FHC, a lenda de que viu uma vaca pela primeira vez aos 50 anos espraiou-se: “Foi invenção de Fernando Henrique. Na verdade, vi com 17 anos.”

Citado como ministeriável desde a redemocratização, ocupou um lugar no Planalto pela primeira vez em 1996. O ministro do Planejamento não media palavras para criticar a política cambial que sobrevalorizou o real. Mas foi como ministro da Saúde – a partir de 1998 – que o economista chegou ao ápice de sua atuação política. “Havia uma vantagem em ser um economista no Ministério da Saúde: não se deixar enganar pelos economistas dos outros ministérios”, resumiu. Saiu do governo como o melhor da equipe de FHC. A revista World Link, do Fórum Econômico Mundial, de Davos (Suíça), o incluiu no ministério ideal do mundo. Serra fez por merecer. Enfrentou lobbies pesados, como os das indústrias farmacêutica e tabagista, e chegou até a ser ameaçado de morte. Criou os genéricos, acabou com a propaganda do cigarro e liderou uma das mais eficientes campanhas contra a Aids no mundo.

No Legislativo também demonstrou fôlego de campeão. Elegeu-se deputado federal em 1986, novamente em 1990 e ganhou uma vaga no Senado em 1994. Teve duas derrotas além da campanha presidencial de 2002: quando tentou conquistar a Prefeitura de São Paulo, em 1988 e em 1996. Devoto de Santa Rita de Cássia, a santa das causas impossíveis, Serra conseguiu realizar o sonho de chegar ao Executivo pelas urnas no dia 31 de outubro. Era para ter sido batizado como Jorge, em homenagem ao avô italiano Giorgio. Mas dona Serafina deu à luz o filho único, em 1942, em 19 de março, dia de São José, que o papa Benedito XV (1854 a 1922) declarou patrono da justiça social. É tudo o que o Brasil mais espera de seus políticos.