"Que as montanhas de ferro lhe dêem força para superar as dificuldades. O Estado de Minas é um Estado de compreensão”, foi o recado direto do governador mineiro, Aécio Neves, às possíveis vicissitudes entre as lideranças da cúpula do Mercosul. A mensagem foi dita no jantar na quinta-feira 16 no Museu de Artes e Ofícios, em Belo Horizonte, em comemoração a uma década do Protocolo de Ouro Preto, marco institucional para a criação do bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. As intrigas palacianas, que surgiram entre os dois protagonistas, Brasil e Argentina, permearam a 27ª reunião da cúpula entre 15 e 17 dezembro, mas não foram suficientes para azedar a festa. Argentinos e brasileiros fizeram um esforço mútuo para baixar a temperatura das tensões entre os dois países que se estenderam por todo o ano de 2004. O presidente argentino, Néstor Kirchner, comeu calmamente seu filé mignon, frango e pimentas brasileiras, arroz com abobrinhas e farofa de beiju enquanto conversava com o presidente brasileiro, Luis Inácio Lula da Silva, e o venezuelano, Hugo Chávez. Em seu discurso antes de se iniciar o jantar, regado a vinhos chilenos (Casa Rivas Sauvignon Blanc 2004) e argentinos (Dolium Malbec 2002), o presidente Lula falou que a união dos países latinos passava historicamente por três heróis: José Martí, Simon Bolívar e Tiradentes. O presidente Chávez disse a ISTOÉ que gostaria de saber mais sobre o herói brasileiro, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, que, por participar de um movimento libertário, a Inconfidência Mineira (1788-1789), foi enforcado em 21 de abril de 1792. Os presidentes percorreram no dia seguinte os mesmos tortuosos paralelepípedos das ruas de Vila Rica (hoje a cidade mineira de Ouro Preto), por onde os inconfidentes tramaram e traçaram conspirações contra o império português.

O presidente Lula, que se sentou entre o presidente argentino e o paraguaio, Nicanor Duarte Frutos, também enviou sua mensagem. “Não queremos brigar com ninguém. Queremos traçar nosso destino, andar com nossas pernas, ver com nossos olhos e falar com nossa boca.” Mas esse desejo de ação comum do bloco ainda está longe de se concretizar. Persistem terríveis rangeres de dentes, como demonstrou o chanceler argentino, Rafael Bielsa, ao dizer que terá uma atitude “canina” em relação ao Brasil. Os argentinos querem a adoção de salvaguardas
(mecanismos automáticos de restrição comercial). O Brasil rejeita-as e já recebeu apoio dos sócios Uruguai e Paraguai, contrários a esse gatilho comercial. Até porque, numa área de união aduaneira, é inviável existir esse tipo de medidas. A pressão argentina remonta a tempos anteriores à gestão de Kirchner, mas ele vem se posicionando como um dos maiores defensores dos empresários argentinos, descontentes com a avalanche de produtos brasileiros que entram no país. Os vizinhos, que também não gostaram nem um pouco dos acertos entre Brasil e China, têm suas razões porque a Argentina está começando a se levantar da avassaladora crise em que se meteu em 1991. “Quando o Brasil elege a China como economia de mercado, temos um problema”, afirmou Roberto Maceri, da Confederação Argentina das Empresas Médias.

Quem jogou baldes de água fria no incêndio foi o chanceler brasileiro, Celso Amorim, que ressaltou várias vezes o crescimento comercial entre os países na América Latina, principalmente entre Brasil e Argentina. As exportações do Brasil para países do Mercosul, entre janeiro e novembro de 2004, como atestou Amorim, cresceram em mais de 60%, o dobro da taxa de crescimento das exportações totais do Brasil. Nenhum bloco atingiu esse volume e isso é um fato significativo. Mas também deu um sinal de alerta. “Se o instrumento da salvaguarda for adotado contra os produtos brasileiros, ele terá que ser utilizado também em relação aos produtos argentinos. Mas nós achamos que há maneiras melhores de se resolver essas questões”, afirmou Amorim. Entre essas maneiras, o governo brasileiro estaria investindo em infra-estrutura, compras governamentais, estímulos a joint-ventures, que levem a um aquecimento industrial. Outra resolução seria uma limitação na exportação de alguns produtos para a Argentina, como aconteceu com os setores de calçados. “Somos parceiros. Não estamos falando aqui em trocas”, amenizou o ministro a ISTOÉ.

A Argentina é um parceiro importante para o Brasil em várias frentes, entre elas as duras negociações com a União Européia, a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O negociador argentino no Mercosul, Eduardo Sigal, favorável às restrições argentinas, disse que “tanto do lado da Argentina como do Brasil existem aqueles que querem a deterioração do bloco”. A razão é simples: o favorecimento da Alca. Essa postura é fortalecida pelas dificuldades que persistem nas negociações entre a UE e o Mercosul. A UE exige que os integrantes do bloco acabem com a dupla cobrança de tarifas de importação – coisa que acontece principalmente quando, por exemplo, um produto entra no Brasil e tem como destino final o Paraguai. Neste encontro na capital mineira, ficou acertado que apenas em 2008 entrará em vigor uma resolução para acabar com essa duplicidade.

As assimetrias, como vêm sendo chamadas as diferenças entre a Argentina e o Brasil, mas também entre os outros dois membros, Uruguai e Paraguai, precisam ser amenizadas. O Paraguai, por exemplo, quer ser recompensado por ter boa parte de sua atividade econômica na informalidade, ou seja, na pirataria. “Já diminuímos muito desse comércio informal nos últimos anos” garante a chanceler paraguaia, Leila Rachid. O Brasil, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES), prometeu ao Paraguai a injeção de US$ 300 milhões. O Mercosul também ajudou na criação de um sistema de normatização para diminuir a evasão fiscal.

Entre as 22 medidas estabelecidas durante a cúpula de BH, foi acertada a criação do Fundo de Convergência Estrutural, que regulariza as compras governamentais e estabelece as regras para comercialização no Mercosul. Também foram aprovados a facilitação de vistos empresariais, a transferência de condenados para cumprir pena em países de origem e um projeto para combater o tráfico de imigrantes.

O Mercosul saiu maior desta cúpula, com a adesão de mais três Estados associados: a Colômbia, o Equador e a Venezuela. Somando-se à Bolívia, Peru e Chile e aos quatro membros permanentes, o bloco totaliza agora dez membros. “Há países fazendo fila para entrar no Mercosul. E não são apenas os países em desenvolvimento, mas também a Coréia do Sul e o Canadá”, comemora Amorim. As conversações com o Canadá, por exemplo, começam no próximo mês. O Mercosul também fechou um acordo de preferências tarifárias com a Índia e o bloco de países Sacu, composto pela África do Sul, Namíbia, Botswana, Lesoto e Suazilândia. O negociador da Sacu, Xavier Chaim, afirmou a ISTOÉ que ainda não dá para prever qual será o volume das negociações. É importante que “o nível de tolerância seja amplo”, afirmou o ex-presidente Itamar Franco, que participou do famoso documento de Ouro Preto. “A comunidade européia começou há 50 anos e até hoje tem suas questões conflitantes”, afirma Itamar Franco aos que querem derrubar o bloco.