Rodeado de estrelas que cobriam os ombros de generais, almirantes e brigadeiros, no almoço de confraternização de fim de ano no Clube Naval de Brasília, na quarta-feira 16, o comandante-supremo do PT e das Forças Armadas, Luiz Inácio Lula da Silva, perscrutou o horizonte com confiança: “Olho para 2005 e vejo um mar de almirante, um céu de brigadeiro muito mais tranquilo do que tivemos este ano.” Olhando um pouco mais à frente, para além dos recifes da sucessão presidencial, o timoneiro advertiu: “As eleições de 2006 não podem ser a prioridade nº 1 do governo.” Não podem, mas já são a preocupação central do próprio partido do governo, o PT, e dos partidos de oposição. A duas semanas do ponto exato que marca a metade da travessia de quatro anos do governo Lula, os políticos levantam âncora para enfrentar o mar encapelado rumo às urnas, escalando os comandantes que vão mobilizar suas equipagens partidárias. As velas do PT inflaram primeiro, enfunadas pelas pesquisas CNI-Ibope e CNT-Sensus que mostram Lula como um candidato imbatível daqui a dois outubros. Na pesquisa Sensus, o presidente oscila entre 43% e 45%, com chances de liquidar a fatura ainda no primeiro turno. O segundo candidato mais citado, o ministro Ciro Gomes (PPS), não passa de 16%. Um mar de gente, 73,5%, acredita que a economia vai melhorar em 2005, o que pode garantir uma rota de chegada mais fácil para Lula, que começa a descomprimir o salário mínimo e a diminuir o impacto do Imposto de Renda para agradar às camadas mais pobres e à influente classe média. Na pesquisa Ibope, Lula continua embalado, mas sofre uma perseguição mais próxima do tucano José Serra: 42% contra 33% do prefeito eleito de São Paulo, aparentemente o único capaz de forçar um segundo turno presidencial.

O mais emplumado dos tucanos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, reapareceu em Brasília para um encontro com os vitoriosos do PSDB nas eleições municipais, aclamado pelos gritos de “volta, volta”. E duvidou da força de Lula: “Eu o venci duas vezes. Por que não uma terceira?”Antes que subisse ao palanque, emendou: “Com outra pessoa, que não eu.” Mas o tom de candidato de FHC foi avassalador. Chamou o governo do PT de oportunista, vazio, ridículo, vaidoso. “Eles tentam afinar a voz para falar com a nossa voz, mas sai em falsete. A equipe de Lula é ruim. A parte boa é a da equipe econômica”, alfinetou, ao lado de Serra e do governador Geraldo Alckmin, que disputam com ele o poleiro de candidato. Não foi só o maior partido da oposição que mostrou suas garras. O menor e mais novo deles, o rebelde PSOL, Partido do Socialismo e da Liberdade, nascido das costelas do PT, atingiu na terça-feira as 438 mil assinaturas que lhe garantem registro definitivo – e dá asas para sua principal liderança, a senadora Heloísa Helena (AL), tentar o vôo presidencial contra Lula: “Não temos o direito de ficar em 2006 entre os neoliberais do PSDB e os neoliberais do PT”, ataca, assumindo já a candidatura. Oficialmente, quem disparou na frente foi o PFL, aparentemente cansado de ser um mero fornecedor de nomes para compor chapa dos outros com candidatos a vice. Agora, eles querem a cabeça da chapa e, na quinta-feira 16, o diretório nacional do partido formalizou em Brasília a pré-candidatura do prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia. “Sem contraditório e sem adversário, Lula será reeleito”, diz o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), abrindo o jogo de quem não quer deixar a estrela petista brilhando solitária. “Nossa estratégia é levar Lula ao segundo turno, quando o governo sempre fica mais fraco”, explica o senador.

Na margem esquerda da oposição, a bússola também se orienta pela conquista do Palácio do Planalto. Num movimento similar ao rebelde PMDB, o PPS formalizou seu rompimento com o governo, exigindo a entrega de cargos do governo – um recado direto ao ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes (CE), que disputa o leme do partido com o presidente da sigla, o deputado Roberto Freire (PE). A guinada irritou um ilustre imediato, o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi: “Se o barco não está bem, o correto é que mais gente entre e ajude a remar. Abandonar não é a melhor escolha”, diz. Enquanto se livra do lastro ministerial, o PPS faz uma aproximação com o PDT órfão do oposicionista Leonel Brizola. Ao lado do presidente pedetista, Carlos Luppi, o deputado Freire seguiu a linha de Heloísa Helena, atacando PT e PSDB: “É impossível saber qual dos dois é mais atrasado. No poder, ambos se utilizam de políticas assistencialistas e compensatórias.” Por isso mesmo, PPS e PDT se mostram encantados com o discurso do senador Cristovam Buarque (PT-DF), pernambucano como Freire e brizolista como Luppi, cada vez mais distante do PT e de Lula, que o demitiu por telefone da pasta da Educação. “Precisamos construir um projeto alternativo que fuja do debate em torno do crescimento do PIB, enquanto se concentra cada vez mais a renda nacional”, lembra Freire, entoando um canto que cai como música nos ouvidos do economista e professor Cristovam, sempre preocupado com Bolsa-Escola e criança na escola.

Sub judice – Os movimentos mais amplos atingem o PMDB, envolvido num redemoinho que divide governistas e rebeldes e ameaça romper o casco partidário. A maioria de senadores e deputados da bancada quer continuar grudado ao Planalto, enquanto o ex-governador Anthony Garotinho luta para ganhar a máquina e o tempo do PMDB na tevê como candidato em 2006. A convenção rebelde de domingo 12, que decidiu pelo afastamento do partido do governo Lula, chacoalhou a legenda nos tribunais. Na véspera, um juiz de plantão suspendeu o encontro, reativado por um recurso ao presidente do tribunal ao anoitecer de domingo. Na terça-feira 14, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, restabeleceu a suspensão. A partir daí, os argumentos pouco jurídicos embaralharam a questão. Vidigal, diziam os rebeldes, foi nomeado para o STJ pelo amigo e então presidente José Sarney, hoje presidindo o Congresso e aliado de Lula na briga pela adesão pemedebista. Para compensar estes laços afetivos, os rebeldes cruzaram os laços familiares – e contrataram o advogado Erik Vidigal, filho de Edson, para assinar o recurso contra a decisão do pai. Pensavam que o presidente do STJ, por isso, se consideraria sob suspeição –, mas a ousadia produziu efeito contrário. Com os olhos marejados pela circunstância de ter que decidir contra o filho, Edson rejeitou a petição de Erik – e a convenção do PMDB caiu num limbo jurídico que aguarda o próximo lance na Justiça, que pode chegar ao Supremo Tribunal Federal. Até lá, ninguém sabe quem manda em quem no PMDB.

Na dúvida, Lula conversa com a porção simpática ao Planalto – os ministros Eunício Oliveira (Comunicações) e Amir Lando (Previdência) e os líderes no Senado, Renan Calheiros, e na Câmara, José Borba, além do próprio Sarney. “Agora sei em quem confiar, separando o joio do trigo”, disse Lula, numa conversa de hora e meia no Planalto, a sós com os cinco, na noite da segunda-feira. O presidente queixou-se dos governadores de Brasília, Joaquim Roriz (“pedi que o Palocci atendesse tudo o que ele pedia”), e do Paraná, Roberto Requião (“segurei várias vezes uma intervenção federal no porto de Paranaguá, dirigido pelo irmão de Requião”), e elogiou muito o de Santa Catarina, Luiz Henrique, que segurou 24 dos 27 convencionais no seu Estado (“ele fez a parte dele”). Renan anunciou ao presidente que estava negociando o transbordo de Ciro Gomes para a conturbada nau peemedebista, e Lula nem piscou. Mas o presidente deu uma boa-nova ao quinteto: “Roseana Sarney está 90% certa no Ministério.” Isso quer dizer que a senadora do Maranhão, filha de Sarney, deve sair nos próximos dias do PFL para aguardar, sem partido, o bilhete de ingresso no primeiro escalão, na minirreforma que Lula promete para o início do ano. Ninguém vai perder seu emprego nas festas de Papai Noel: “Quero descansar no fim do ano. Reforma, só em janeiro”, avisou Lula. Roseana viajou para o réveillon na sua terra sem saber, ao certo, seu destino na tripulação: ou a vaga de Guido Mantega no Planejamento ou a cadeira de Patrus Ananias no Desenvolvimento Social. Confortado com tanta deferência, o pai da senadora finalmente reconheceu na quinta-feira 16 que o melhor candidato para sucedê-lo na presidência do Congresso é o líder Renan Calheiros: “É um grande nome”, admitiu. Para afagá-lo, Lula quer botar o manso Sarney no lugar do rebelado Michel Temer, presidente do PMDB. Isso, se o PMDB não afundar antes, tornando mais revoltas as águas de 2006.