Agências de notícias de todo o planeta noticiaram, no final de novembro, uma megaoperação policial realizada simultaneamente em Madri e em Barcelona, na Espanha, visando punir os responsáveis por difundir pornografia infantil via internet. O resultado da ação policial foi contundente: 90 pessoas de diversas classes sociais e de várias nacionalidades foram para a cadeia, sem direito a fiança. Por trás da bem-sucedida operação policial há um exemplo a ser seguido. Segundo levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), anualmente cerca de dois milhões de crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual. Boa parte desse número é resultado da pedofilia via internet, que se multiplica com a mesma velocidade da tecnologia digital e desafia as polícias dos cinco continentes. A fórmula encontrada pelos espanhóis para enfrentar a questão se apóia em dois ingredientes: rapidez na troca de informações e uma legislação absolutamente severa. São quesitos que podem facilmente ser implantados por qualquer país interessado em combater a pedofilia digital.

As prisões efetuadas em Madri e em Barcelona foram o primeiro teste de uma nova lei que passou a vigorar em outubro. “Mudamos o Código Penal. Agora, na Espanha, é crime o simples fato de alguém portar imagens de crianças em situações eróticas”, explica Gabriel González, responsável pelo comitê espanhol do Unicef. “Antes, o crime estava apenas em comercializar ou divulgar essas imagens. Isso muitas vezes impedia a punição, pois nada adiantava encontrar as fotografias no computador de alguém. Era preciso flagrar a pessoa transmitindo essas imagens, e quando ela usava um provedor de outro país ficava ainda mais impossível a punição.”

Uma brasileira no front – A mudança feita no Código Penal foi decisiva para colocar a Espanha na condição de um dos países mais eficientes do mundo no combate à pornografia infantil. Mas não foi uma medida isolada. Para que a nova legislação saísse do papel e virasse de fato um instrumento prático, organizações não-governamentais da Espanha e de outros países europeus construíram nos últimos dois anos um eficiente canal de denúncias. Boa parte do trabalho foi desenvolvida pela advogada paraibana Ana Luiza Rotta, mestre em direitos humanos pela American University Washington College As Law, nos Estados Unidos. Grávida do terceiro filho, há seis anos ela vive em Madri e desde 2001 está empenhada na luta contra a pedofilia digital. Em 2002, ajudou a fundar a Protégeles, uma ONG criada para denunciar os crimes cometidos através da rede mundial de computadores, inclusive aqueles que são praticados contra crianças e adolescentes. A ONG é, na verdade, uma grande hotline – como são conhecidas internacionalmente as agências que recebem denúncias de crimes praticados pela internet. Ana Luiza e seus companheiros, inclusive hackers, checam as informações recebidas e encaminham o material, já devidamente apurado, para a polícia. “Chegamos a receber mais de mil denúncias por mês e temos obtido bons resultados”, diz a advogada brasileira. “Há uma relação de confiança com a polícia e com alguns provedores. Só encaminhamos o que foi devidamente checado e com isso reduzimos o tempo de investigação.”

No ano passado, uma ação conjunta da Protégeles com o provedor Terra, na Espanha, tirou da rede cerca de 300 mil páginas de pornografia infantil, das quais mais de mil sites estavam hospedadas no Brasil. O principal segredo descoberto pelos espanhóis para vencer os pedófilos virtuais está no que se pode chamar de uma rede internacional voltada para o bem. A Protégeles faz parte da Associação Internacional de Canais de Denúncias (Inhope). “Com esse mecanismo, a denúncia de um site com conteúdo ilegal hospedado na França, por exemplo, será investigado na própria França. Normalmente os trâmites de uma investigação como essa podem demorar anos. Com esses acordos é possível resolver tudo em questão de dias”, comemora a advogada brasileira.

A União Européia comprou a briga e incentiva a proliferação de hotlines  como a Protégeles em todo o continente, inclusive financiando parte do custo dessas ONGs, para que se mantenham filiadas ao Inhope. “Para estar  ligada à rede internacional, uma entidade como a Protégeles gasta cerca de seis mil euros por ano (aproxidamente R$ 24 mil), mais três ou quatro viagens anuais a diversos países do continente para reuniões de troca de experiência  entre todos os filiados”, estima Ana Luiza.

Caminho certo – Tudo indica que o Brasil esteja no caminho certo para enfrentar o problema da pornografia infantil. O trabalho voluntário realizado no Brasil pelo casal Anderson Batista e Roseana Miranda, de São José dos Campos, no interior de São Paulo, é muito parecido com a Protégeles. Anderson e Roseana, como foi divulgado por ISTOÉ em outubro, criaram um site chamado Censura também com o propósito de combater a pedofilia digital, já responsável por três dossiês encaminhados à Justiça com mais de 6,8 mil denúncias. Falta, porém, uma integração com outras entidades semelhantes no Brasil e no mundo. “Às vezes investigamos pedófilos que já estão na mira da polícia de outros Estados”, diz Anderson. “Além de agilizar o trabalho, a comunicação em rede nacional e até internacional colaboraria com a construção de uma importante base de dados, fundamental para que haja punição”, acredita Fábio Reis, mestre em criminologia internacional pela Universidade de Sheffield, Inglaterra, e assessor técnico da Secretaria de Direitos Humanos da Bahia. “Como esse tipo de crime transcende fronteiras, o contato com frentes internacionais é imprescindível”, explica.

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Não basta, porém, que sejam feitos maiores investimentos nos instrumentos de denúncia e de apuração. A exemplo do que foi feito na Espanha, o Brasil precisa alterar sua legislação. “Precisamos criminalizar quem mantém em seu poder imagens de crianças em situações eróticas”, assegura o perito-chefe do setor de crimes cibernéticos da Polícia Federal em Brasília, Paulo Quintiliano. O Código Penal brasileiro não considera crime a posse de material pornográfico envolvendo crianças. “Já aconteceram vários casos em que demos o fragrante na casa dos pedófilos e não pudemos prendê-los”, relata Quintiliano. “É muito difícil provar que o pedófilo estava distribuindo esse material”, lamenta o perito. Exatamente o que ocorria na Espanha antes de outubro.

Depende do Congresso – O trabalho da brasileira Ana Luiza ajudou a Espanha a enfrentar os pedófilos. No Brasil, uma outra mulher nordestina luta a mesma batalha. A senadora Patrícia Saboya (PPS-CE) distribui seu tempo entre os três filhos e a luta contra a pornografia infantil. Recém-nomeada, em Roma, membro da rede internacional de mulheres parlamentares em defesa da infância e da adolescência, ela foi indicada como responsável para acompanhar as ações desenvolvidas no continente americano sobre a questão das crianças e presidiu a CPI que investigou as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Percorreu 22 Estados, ouviu 285 pessoas e checou 832 denúncias. O relatório final da CPI sugere o indiciamento de 250 pessoas e recomenda o mesmo que foi feito na Europa: mudanças na legislação. “Não adianta só identificar e desmontar essas redes de exploração; temos que fazer essas alterações legislativas para poder modernizar o Código Penal e levar essas pessoas para a cadeia”, alerta Patrícia. Nos próximos dias, o Congresso deverá se manifestar. Dependendo do que disserem deputados e senadores, o Brasil poderá dar um passo decisivo para deixar a vergonhosa posição de quarto lugar no ranking da pornografia infantil.


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