O continente mais inóspito do planeta deixou de ser uma exclusividade dos exploradores intrépidos e dos pesquisadores vinculados às 44 bases científicas nele instaladas. Em um movimento que deslanchou no final dos anos 90, a Antártica recebe a cada ano quase 20 mil visitantes. São pessoas absolutamente convencionais, em busca de uma mescla de aventura, ecoturismo e conhecimento científico. Na prática, todo cidadão tem passe livre para conhecer o último território descoberto pelo homem, desde que tenha boas condições de saúde e possa bancar a viagem. Com os mares repletos de icebergs e menos de 1% do terreno livre do gelo permanente, a Antártica requer apenas cuidados específicos. “Qualquer deslocamento a mais de 500 metros de um posto habitado já é uma expedição”, afirma o canadense Ian Shaw, 39 anos, que tem no currículo 67 viagens à Antártica.

Essa nova categoria de exploradores antárticos circula pela região em navios modernos e confortáveis, de onde parte para excursões terrestres em botes de borracha, com capacidade para oito passageiros, projetados para navegar sob baixas temperaturas. Tudo precedido por sessões de instrução e treinamento, que incluem entender que o clima da região é imprevisível. Ao menor sinal de virada, deve-se procurar abrigo seguro. Outro detalhe fundamental é praticar “a pegada do marinheiro”, a forma de segurar o outro pelo pulso, na hora de embarcar e desembarcar. Depois da visão do primeiro iceberg, nada é mais excitante do que o primeiro desembarque.

Reserva natural – Em terra firme, Port Lockroy está entre os lugares mais visitados. Antiga base britânica, instalada na ilha Goudier, Port Lockroy havia sido abandonada nos anos 60. Restaurada em 1996 por uma ONG, agora tem um museu sobre a
época dos pioneiros. É também objeto de estudo sobre o impacto do turismo, sendo que metade da ilha se encontra interditada ao trânsito humano. No futuro as duas partes serão comparadas. Por causa do experimento, é o único lugar em que se
pode andar entre os pingüins, sem manter distância dos animais, como rezam as regras de proteção ambiental.

Continente sem países nem cidades, a Antártica era considerada terra de ninguém até que, após a Segunda Guerra Mundial, acirraram-se antigas disputas territoriais sobre a região, principalmente entre o Reino Unido, a Argentina e o Chile. As pendengas foram suspensas em 1961 pelo Tratado Antártico, que converteu o continente em reserva natural, destinada a fins pacíficos e de pesquisa. Firmado originalmente por 12 países, o tratado tem hoje 44 signatários, entre eles o Brasil, que mantém uma base, a Comandante Ferraz, na ilha Rei Jorge.

A Argentina, como os outros países envolvidos nas disputas, está entre os signatários de primeira hora. Embora seus projetos de colonização tenham sido congelados pelo tratado, o país conserva quatro bases no continente, entre elas a Esperanza, na Pensínsula Antártica. Nela, vivem 55 pessoas: militares – destacados para temporadas de um ano – e suas famílias. Micaela Díaz, nove anos, conta que está “amando” a experiência e que, mesmo de longe, se comunica com os amigos pela internet. Ela só não se conforma em não poder brincar com os animais: “As crianças não podem, mas os cientistas até pegam neles.”

Mar vermelho – Medidas de proteção ambiental fazem parte da história recente
da Antártica. Até os anos 60, o continente era alvo dos caçadores de baleias. O
auge dessa atividade ocorreu em 1931, quando 41 barcos-fábrica e seis estações costeiras estiveram em atividade, o que resultou na captura de cerca de 40 mil
baleias. Escombros de uma dessas estações encontram-se na ilha Decepção,
uma cratera submersa de vulcão ainda ativo, que permite a entrada de navios, por
uma passagem de 200 metros de largura. Além de percorrer as instalações, o explorador contemporâneo da Antártica pode se arriscar numa espécie de ofurô natural, pois basta cavar um pouco na praia que brota água quente, de origem vulcânica. “O duro é enfrentar o frio depois do banho”, diz o administrador chileno Andrés Charme Silva, 46 anos.

“Nos tempos em que a estação funcionava, até seis navios baleeiros podiam
ancorar no interior da cratera ao mesmo tempo”, conta o pesquisador Rudolf
Thomann. “Era tanto sangue que o mar ficava vermelho.” Thomann integra a equipe
de conferencistas do navio norueguês Nordnorge, um titã da nova era de expedições antárticas. Nele, os passageiros intercalam expedições com palestras (em inglês, espanhol e alemão). Dos hábitos dos pingüins ao aquecimento global, uma extensa variedade de temas entra em debate.

Tanta oferta tem seu preço. Uma viagem de 15 dias no Nordnorge, embarcando em Ushuaia, no sul da Argentina, e desembarcando em Puerto Montt, no Chile, custa cerca de US$ 5.800. “Os brasileiros são raros nesses cruzeiros”, diz o capitão Kjell Skjoldvaer. Um dos representantes do navio no Brasil, Plínio Nascimento, da operadora Nascimento Turismo, acredita que, apesar do alto custo, a ausência é uma questão cultural. “Há brasileiros que gastam até mais na Europa e nos Estados Unidos.” Quem vai, mesmo a contragosto, não se arrepende. É o caso da australiana Emily Mallett, 16 anos, que viajou para acompanhar a avó, Helen, 73 anos. “No começo, resisti à idéia”, diz. “Nunca imaginei que fosse tão impactante.” Coisas da Antártica.