A biografia de Ayaan Hirsi Ali, Infiel, traduzida recentemente no Brasil, é um soco no estômago de quem a lê. O livro pode ser considerado uma versão africana do J’Accuse! (Eu acuso!), o célebre artigo de 1898 em que o escritor Émile Zola denuncia o anti-semitismo da mui cristã sociedade francesa no caso Dreyfus, um oficial judeu falsamente acusado de traição. A diferença é que os intolerantes de hoje reverenciam o profeta Maomé e Ayaan, ao contrário de Zola, sofreu na própria carne a opressão que ela denunciou. Nascida há 38 anos no interior da Somália, aos cinco anos ela foi submetida à excisão do clitóris, uma prática bárbara a que estão sujeitas mais de 90% das meninas somalis – e de outros países africanos – para que sejam “purificadas” para o casamento. Já adolescente, ela teve um traumatismo craniano depois de ter sido espancada por um clérigo muçulmano, seu professor religioso. Aos 22 anos, Ayaan fugiu de um casamento com um primo que tinha sido arranjado por seu pai. E, mesmo depois de ter obtido a cidadania holandesa, ela era freqüentemente ameaçada por fanáticos religiosos residentes na Holanda por não cumprir suas obrigações para com seu clã. Eleita para o Parlamento holandês em 2002, Ayaan fez com o diretor Theo Van Gogh um curta-metragem, Submissão, que tratava da opressão das mulheres sob o islamismo. Van Gogh foi degolado em plena Amsterdã e seu algoz, um fervoroso servo de Alá, ameaçou dar cabo à ovelha desgarrada. Mas na Europa o livro causou pouca comoção. Onde estão os modernos “dreyfusards”, os defensores das liberdades civis contra o fanatismo religioso? E as feministas, tão zelosas em denunciar a discriminação no Primeiro Mundo? A hipocrisia relativista ocidental se recusa a condenar costumes bárbaros em nome do direito à diversidade. Por isso os valores do Iluminismo europeu hoje são mais bem defendidos por mulheres deserdadas como Ayaan.