A senadora Cristina Fernández de Kirchner chegou à Casa Rosada com mais de oito milhões de votos, cerca de 45% do eleitorado da Argentina. Mas na cidade de Buenos Aires, coração e locomotiva da Argentina e reduto da classe média, a ex-primeira-dama ficou apenas em segundo lugar, atrás de Elisa Carrió. A reação de um dos membros do staff do marido-presidente não poderia ter sido mais grotesca: “Peço-lhes (aos portenhos) que a cidade seja parte do país e que deixem de pensar nela como uma ilha dentro da Argentina.” O autor dessa pérola foi ninguém menos que Alberto Fernández, chefe de gabinete do presidente Kirchner. Estranha maneira de se encarar a diversidade política numa sociedade democrática: aqueles que não pensam como nós são considerados “insulares” e quase inimigos.

Cristina Kirchner aparentemente manteve distância dessa postura antidemocrática. No discurso da vitória, ela pediu a colaboração de todos os argentinos, os que votaram nela e os que não votaram. A senadora, que junto com o marido se opôs à ditadura militar (1976-1983), sabe o desastre que representa para qualquer país civilizado governos com pretensões salvacionistas. A democracia continua a ser, na frase cáustica do velho Winston Churchill, o “pior” dos regimes políticos – à exceção de todos os demais.

Ninguém mais aposta num retrocesso político no Cone Sul, mas recaídas autoritárias ainda pairam como nuvens negras sobre uma região marcada por ditaduras militares e caudilhismos. O “esquerdista” Hugo Chávez é a bola da vez, mas não se pode esquecer que, antes dele, tivemos candidatos a Bonaparte na “direita”: Fernando Collor, Alberto Fujimori e Carlos Menem. Ao lado de Michele Bachelet, Cristina Kirchner pode ajudar a forjar um novo paradigma na região: lideranças femininas com luz própria e forte compromisso democrático.


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