No aniversário de 80 anos da rendição japonesa, governo descarta nova declaração de desculpas sobre crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, rompendo tradição iniciada por antecessores.Apesar da efeméride simbólica de 80 anos, o governo do Japão vai abrir mão nesta sexta-feira (15/08) de emitir uma declaração oficial sobre o fim da Segunda Guerra Mundial no Pacífico, quebrando uma tradição que remontava aos anos 1990.
Em 15 de agosto de 1945, o então imperador Hirohito anunciou pelo rádio a rendição do Japão frente aos Aliados.
Agora, oitenta anos depois, o atual primeiro-ministro Shigeru Ishiba decidiu permanecer em silêncio. Ao ignorar a data, o premiê rompe uma prática iniciada em 1995, que envolvia a publicação de uma declaração a cada décimo aniversário da rendição.
Em 1995, o então premiê Tomiichi Murayama tornou-se o primeiro chefe de governo japonês a "se desculpar de todo coração pela dominação colonial e agressão" e expressar seu "profundo arrependimento" pelos crimes cometidos pelo Império Japonês durante a Segunda Guerra Mundial. À época, o Ministério das Relações Exteriores do Japão também publicou a declaração em chinês, coreano e inglês.
Afastamento do pacifismo
A decisão de Ishiba surpreende também porque o Japão redefiniu recentemente sua política de segurança e defesa. Analistas apontam que o governo poderia ter usado o 80º aniversário para explicar essa mudança de rumo. Na prática, a nação insular já se despediu da política externa pacifista que vigorou nas décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Os gastos japoneses com defesa devem chegar a 2% do PIB até 2027. Atrás apenas de EUA, China e Alemanha, o Japão é a quarta maior economia do mundo.
Tóquio também afrouxou uma proibição de exportar armas. No início de agosto, a Mitsubishi Heavy Industries obteve o primeiro grande contrato de defesa desde a guerra, superando a alemã Thyssenkrupp Marine Systems. A empresa construirá, por cerca de 5,6 bilhões de euros, 11 fragatas para a Marinha australiana.
Com seu silêncio, o premiê de 68 anos também parece estar levando em conta o peso da facção conservadora do governista Partido Liberal Democrata (PLD), e tentando não colocar em risco sua posição como chefe de governo e do partido após a derrota nas eleições para o Senado em julho. Os conservadores do PLD sustentam que, com a declaração do então premiê Shinzo Abe em 2015, tudo o que era necessário dizer sobre o fim da guerra já foi dito.
No 70º aniversário, Abe reafirmou os pedidos de desculpas de seus antecessores Tomiichi Murayama (1995) e Junichiro Koizumi (2005), mas ao mesmo tempo apontou que os japoneses já haviam feito o suficiente. "Não podemos permitir que nossos filhos, netos e até as futuras gerações, que nada tiveram a ver com essa guerra, sejam obrigados continuamente a pedir desculpas", disse Abe na ocasião.
Crimes
No início do século 20, o Império do Japão começou a entrar em uma rota imperialista na Ásia. A partir de 1910, passou a colonizar a Coreia, que foi submetida a uma racista política de assimilação. Em 1931, os japoneses também estabeleceram um estado-fantoche em parte da China e em 1937 iniciaram uma guerra aberta contra os chineses. Em 1941, a agressão japonesa se ampliou com ataques a colônias ou territórios dos EUA, Reino Unido e Holanda. À época, o país também era um aliado da Alemanha nazista.
Nesse período, o Pacífico foi palco de crimes japoneses como o "Estupro de Nanquim", na China; uso de escravas sexuais na Coreia; chacinas de civis nas Filipinas, Birmânia e na Malásia ocupadas; experimentos de armas biológicas na China; tratamento brutal e execuções de prisioneiros aliados; e trabalho forçado que envolveu milhões de habitantes da atual Indonésia. Historiadores estimam que somente na China as ações japonesas resultaram na morte de entre seis e oito milhões de civis.
O Japão finalmente se rendeu aos aliados em agosto de 1945. Já a assinatura formal da rendição ocorreu em 2 de setembro do mesmo ano.
"Fuga da responsabilidade"
Para o historiador alemão Torsten Weber, do Instituto Alemão de Estudos Japoneses em Tóquio, a declaração revelou uma "mentalidade de colocar um ponto final". "Da perspectiva alemã, parece uma fuga da responsabilidade ou até uma negação da culpa, mas no contexto do Leste Asiático, essa postura é compreensível", disse Weber à DW. Muitos japoneses se veem como vítimas de críticas exageradas da China e da Coreia do Sul, argumentando que esses países "instrumentalizam a história de forma nacionalista e anti-japonesa".
E um exame contínuo e mais profundo das causas do conflito e dos crimes de guerra do Japão também poderia levar a questionamentos críticos sobre o papel da família imperial durante o conflito – algo que, para o público japonês, seria um tabu, afirma Weber.
Disputa ideológica sobre livros escolares
Após o pedido de desculpas de Murayama em 1995, grupos nacionalistas como o Nippon Kaigi e a Japan Society for History Textbook Reform passaram a defender que a Segunda Guerra fosse apresentada aos jovens de forma revisionista. Como resultado, o Ministério da Educação em Tóquio aprovou mais livros didáticos que retratam enganosamente o Japão como vítima, que teria se defendido contra a agressão estrangeira, e que minimizam ou omitem os crimes de guerra cometidos pelo país.
Essas visões também chegam a crianças do ensino fundamental e médio por meio da disciplina de "educação moral", elevada a matéria obrigatória em 2018.
Há dois anos, alguns editores alteraram o conteúdo de seus livros sobre a Batalha de Okinawa. Em abril de 1945, tropas americanas desembarcaram na ilha, considerada uma das últimas linhas de defesa do Japão. Os livros descrevem que civis japoneses cometeram suicídios em massa por terem sido "encurralados pelos ataques militares dos EUA", mas não mencionam mais que as próprias forças japonesas coagiram civis ao suicídio e os usaram como escudos humanos. Apesar dessas influências conservadoras, a maioria dos livros didáticos efetivamente usados nas escolas japonesas ainda apresenta a guerra de forma relativamente neutra.
Jornal liberal critica Ishiba
Inicialmente, o primeiro-ministro Ishiba considerava necessário relembrar o passado de guerra do Japão. Após assumir o cargo em 2024, ele disse a aliados que o 80º aniversário seria "o último grande marco enquanto ainda viverem pessoas que passaram pela guerra". Agora, ao decidir permanecer em silêncio, ele se tornou alvo de críticas. O jornal liberal Asahi, por exemplo, disse qie Ishiba decidiu ficar em silêncio na data histórica por medo de retaliação de facções rivais dentro do PLD.
"Com Murayama [em 1995], o Japão teve um premiê disposto a arriscar seu cargo para fazer tal declaração", escreveu o jornal. "Hoje, o Japão tem um premiê que abre mão de uma declaração para não ser derrubado do cargo."
Apesar da intensa cobertura da imprensa dos aniversários da fase final da guerra – chamada no Japão de "jornalismo de agosto" –, uma pesquisa revelou que mais de um quarto dos japoneses não sabe citar a data do fim da guerra. "Dada a influência das redes sociais no consumo de notícias, é provável que essa proporção continue aumentando", afirma o historiador Weber.