Coluna: Ricardo Kertzman

Ricardo Kertzman é blogueiro, colunista e contestador por natureza. Reza a lenda que, ao nascer, antes mesmo de chorar, reclamou do hospital, brigou com o obstetra e discutiu com a mãe. Seu temperamento impulsivo só não é maior que seu imenso bom coração.

8 de janeiro de 2024: o primeiro ano do resto de nossa democracia

AFP
Apoiadores radicais de Jair Bolsonaro durante a mobilização que derivou no ataque às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 Foto: AFP

Eu nasci e cresci em Brasília, no auge e durante o regime militar. Como criança, jamais percebi qualquer anormalidade, até porque, na capital, normal era ditadura e falta de oposição, não o contrário. Assim, jamais me deparei com protestos ou simples resmungos, sendo impossível, portanto, notar “algo de podre no reino da Dinamarca”.

Tenho lembranças específicas deste período (até os 10 anos de idade): jovens soldados – sempre muito legais – à porta da minha residência, pois o vizinho era um importante ministro de Estado. Os adultos se referindo jocosamente aos militares como “milicos”. As histórias de “carteiradas” e o famoso “sabem com quem está falando?”.

Lembro-me, também, dos desfiles de 7 de setembro (que eram maravilhosos, aliás), das “horas cívicas” na escola, de disciplinas como Educação Moral e Cívica, de músicas (Este é um País que Vai pra Frente) e programas de TV (Amaral Netto, o Repórter) ufanistas e dos hinos oficiais que sabíamos de cor (Bandeira, Pátria, Independência).

DEMOCRACIA

Apenas na adolescência, e posteriormente no início da juventude, aprendi e entendi o conceito de Democracia. Filho de uma geração retrógrada e autoritária, cheia de preconceitos e elitismo, fui percebendo como meus pais pensavam e agiam mal – e não por serem maus! -, e passei a remoldar minhas crenças e meus valores.

Cresci, comecei a trabalhar, tornei-me empresário e “jornalista”, casei e tenho uma filha, meus pais se foram, e com todas as experiências vividas e aprendidas, principalmente ao longo dos últimos 40 anos (desde a redemocratização do Brasil, portanto), considero-me, com absoluta certeza, um ser humano melhor.

Por quê? Bem, porque a democracia me deu a oportunidade de estudar o que eu quis (e não o que era obrigatório); possibilitou o livre debate e a liberdade de expressão (o que me ensina a cada dia); tornou a sociedade aberta e plural (e eu tornei-me tolerante com o “diferente”); e, sobretudo, me estimulou a contestar tudo e todos.

PENSO, LOGO EXISTO

Contestar a política e os políticos, os sistemas e os governos, os dogmas e os preconceitos, as regras e o “status quo”, enfim, a contestar a própria democracia, o único caminho para compreender, aceitar, desejar e defender a… democracia! Sim, nada melhor do que o autoconhecimento para a (ainda que incômoda) aceitação.

O 8 de janeiro de 2023 reforçou a tese de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, frase atribuída ao orador irlandês John Philpot Curran (1750-1817), e me mostrou que minha infância em Brasília não foi tão legal quanto eu pensava, e que meu passado está muito mais presente do que eu sempre imaginei.

Assistir à minha cidade natal ser atacada por vândalos golpistas, enquanto na minha cidade de adoção, Belo Horizonte, amigos meus se reuniam à porta do quartel do Exército, pedindo golpe militar – que pateticamente chamavam de Intervenção Militar Constitucional – me trouxe à tona temores represados no inconsciente.

NUNCA MAIS OUTRA VEZ

Sou judeu e me acostumei com a expressão em inglês “never more, never again” relativa ao Holocausto. Algo como “nunca mais novamente”. E não. Não faço aqui qualquer comparação, por menor que seja, entre atos golpistas e nazismo. Não há sinônimo, na história humana, para tamanha infâmia, horror e iniquidade, senão, talvez, a escravidão.

A expressão me ocorre diante das manifestações previstas para este 8 de janeiro de 2024, o primeiro ano do resto de nossa democracia*. E me refiro às manifestações sinceras, legítimas, e não aos palanqueiros e oportunistas de plantão, que aproveitarão os atos para fazerem proselitismo eleitoreiro barato. A estes, meu total desprezo.

Nenhuma forma de ditadura ou opressão deve ser minimamente relativizada ou tolerada. Totalitarismo, autocracia, tirania e outras atrocidades, a gente sabe como começam, mas nunca como acabam. O Estado Democrático de Direito é o pilar que sustenta a sociedade livre, aberta e plural que temos no Brasil. Quem, ou “quems”, o ataca, fere cada indivíduo.

*O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas: grande sucesso (filme) de 1985, dirigido por Joel Schumacher