" SE UM GÊNIO DA LÂMPADA APARECESSE PARA
REALIZAR TRÊS DESEJOS MEUS, TALVEZ VOLTAR A
ANDAR NÃO FOSSE UM DELES"

FLÁVIA CINTRA, 34 anos, tetraplégica desde os 18 e grávida de gêmeos

A última compra de Flávia Cintra foi uma banheirinha de bebê. Grávida de sete meses de um casal de gêmeos, ela não vê a hora de experimentar esse e outros tantos deliciosos momentos da maternidade com Mateus e Mariana, esperados para o início de agosto. Tetraplégica desde os 18 anos em conseqüência de um acidente de carro, Flávia adaptou a banheira com pés para que funcione como mesa, sob a qual sua cadeira de rodas se alojará. Assim pretende banhar seus bebês, com a ajuda do marido, o advogado Pedro Corradino, na sua casa em São Paulo. A gravidez não foi planejada. "Não tenho gêmeos na família nem fiz inseminação artificial. Fomos escolhidos", diz ela, jornalista e consultora de empresas na área de inclusão social. Com movimentos parciais nos braços, Flávia, 34 anos, também estuda um jeito de amamentar um filho em cada seio. A experiência singular de sua gravidez está sendo registrada e dará origem a um documentário com consultoria do cinesta João Jardim, diretor de Janela da alma, premiada produção sobre pessoas com problemas de visão. O documentário será útil para preparar e informar não só quem tem deficiência e decide dar à luz, mas também aqueles que o cercam. Consciente de suas limitações, Flávia acredita que educar é mais do que tarefa física.

"Não sei como vai ser, mas estou feliz", diz ela.

A história de Flávia é exemplar num país que não enxerga uma população de 24,5 milhões de pessoas com deficiência.

Mostra como essas pessoas podem superar seus limites, realizar seus sonhos e tocar suas vidas com alegrias e realizações, driblando as dificuldades no dia-a-dia. Bonita e extrovertida, Flávia foi à luta por tudo o que teve vontade. "Nunca fez parte do meu plano de vida comprar uma cadeira de rodas motorizada", diz. "Mas tudo de bacana que aconteceu comigo foi depois da cadeira de rodas: meu trabalho, viagens internacionais, conhecer o pai dos meus filhos." Para ela, não andar não é um problema, mas um aspecto de sua realidade. Às vezes é ruim, porque gostaria de ser mais rápida, às vezes é bom porque é mais ligeira nas filas. "Se um gênio da lâmpada aparecesse para realizar três desejos meus, talvez voltar a andar não fosse um deles."

" DÁ PARA SENTIR TODO O TESÃO DO MUNDO, SEM RESTRIÇÕES

MARA GABRILLI, vereadora e tetraplégica, que anda através de eletroestimulação e se alonga diariamente

A paulista Cláudia Sofia Indalécio Pereira certa vez sonhou que se casava numa igreja de paredes azuis. Guardou os detalhes na cabeça e, quando decidiu trocar alianças com o instrutor de mergulho carioca Carlos Jorge Wildhagen Rodrigues, achou em 2005 o detalhe da cor na igreja Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em São Paulo. Ali tornaram-se marido e mulher. "A igreja parou para chorar", lembra ela, 37 anos. "Fomos os primeiros surdocegos do País a se casar." Cláudia ficou surda aos seis anos, vítima de sarampo. Aos nove foi perdendo a visão (por síndrome degenerativa de Usher) e aos 19 ficou cega. Seu marido nasceu surdo e aos dez anos enxergava mal. Eles se comunicam pela Língua Brasileira dos Sinais (Libras) Tátil na palma das mãos. Cláudia usa um método raro de comunicação, o Tadoma (entende o interlocutor ao tocálo próximo do lábio). "Me sinto superbem. Vou atrás do que quero. Somos exemplo de vida", diz Cláudia. Eles moram sozinhos num apartamento, às vezes se perdem dentro de casa, "o que é uma diversão", conta ela. Vão a banco, padaria, churrascaria, praia, com o auxílio de um guia-intérprete. Fazem um curso de mobilidade para se deslocarem sozinhos de casa até o trabalho, a Associação Brasileira de Surdocegos. Vivem com R$ 2 mil mensais. "Fui solteirão até os 45 anos. A vida ficou melhor com o casamento", diz ele.

Pudera. Cláudia o tira para dançar em casa. Na cozinha, prepara lasanha e pavê. Passa, lava e faz crochê. Diz que sua limitação não é impedimento. Batalha para cursar o ensino médio, com guiaintérprete. Quer fazer faculdade de letras e libras. Está ansiosa com as próximas férias, em Campos do Jordão (SP).

O plano B é Socorro (interior paulista), onde praticam esportes radicais. "Já fizemos rafting, boiacross, tirolesa, rapel e arvorismo", diz Carlos, primeiro mergulhador surdocego do Brasil e segundo do mundo, registrado na Sociedade Brasileira do Mergulho Adaptado. Ele aprendeu apnéia aos 17 anos com um tio, em Búzios (RJ). "Vi, por toque, estrelas- do-mar, esponjas, corais, algas e dois naufrágios históricos." Cláudia batizou- se em mergulho numa piscina. "Foi tão romântico ter mergulhado com ele", diz. Ela já saltou de pára-quedas com um instrutor, em 2005. "Minha família dizia: ‘Mas você não enxerga!’ O vento batia no meu rosto, me sentia voando como um passarinho." O maior desafio do casal pode estar a caminho: decidiram ter um filho. "Somos conscientes e temos condições."

CLAUDIO GATTI

" JÁ FIZEMOS RAFTING, MERGULHO E RAPEL

CARLOS RODRIGUES, surdocego e mergulhador, casado com a surdocega Cláudia Pereira

Terapeuta ocupacional, Ariana Chediak Roquim, que prepara o documentário Brasileiros invisíveis e o lançará ainda este ano, diz que o deficiente pode desenvolver potencialidades se a vontade partir dele. "O problema é que os deficientes são treinados para fazer o básico. Tetraplégicos alongam, aquecem e ficam na mesma posição. Mas o corpo tem vontades, como cruzar a perna e levar a mão ao queixo", explica Ariana, responsável por projetos culturais da Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (Seped) de São Paulo. "Atendia uma tetraplégica que gostava de dançar e plantar bananeira. Conseguimos fazer isso tudo."

A moça que queria plantar bananeira era Mara Gabrilli, o belo rosto que ganhou notoriedade na luta pelos direitos da pessoa com deficiência. O trabalho físico diário e a forte crença de que voltará a andar fazem parte da rotina da vereadora paulistana e ex-titular da Seped. Líder na luta pela aprovação das pesquisas de células-tronco, Mara toma choques no corpo por eletroestimulação, anda duas vezes por semana auxiliada por eletrodos e fisioterapeutas e foi a primeirapessoa submetida ao implante de células-tronco. Tetraplégica desde 1994, quando quebrou o pescoço aos 26 anos na capotagem de um Range Rover, ela não se move do pescoço para baixo. Mas chacoalha São Paulo: aumentou a frota de ônibus acessíveis e mudará as calçadas da avenida Paulista. "As pessoas podem produzir e ter felicidade, independentemente da limitação", diz Mara. "Não é utopia. Vivo isso na pele." Aos 38 anos, Mara namora há cinco o nutricionista Alfredo Galebe. Vai a festas em ilhas e viaja para lugares como o Japão. Assina documentos com o auxílio da boca e manda torpedos do celular ditando para sua acompanhante números correspondentes às letras. E trata sua sexualidade com naturalidade. "Dá para sentir todo o tesão do mundo, sem restrições", diz. "Minha sensibilidade aguçou. Uma vez libidinosa, a mulher será sempre libidinosa. O homem tem outras questões, mas nada que eletroestimulação e um bom Viagra não resolvam."

Cego desde os 14 anos e casado há 25 anos, o Ph.D. em economia Luiz Alberto de Carvalho e Silva, 51 anos, fala quatro idiomas e morou em Nova York por um ano, onde completou doutorado na Universidade de Columbia.

Há 20 anos trabalha com agribusiness e, há 13, é professor de custos e orçamentos da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). "Em Grande sertão: veredas há uma frase: ‘Então a velhice veio brotando da juventude.’ A velhice já traz deficiências, é da natureza. Em vez de encarar com tristeza, não é melhor enxergar que nós teremos uma deficiência naturalmente?", ensina. O economista ficou cego numa quarta-feira à tarde, por glaucoma. Na manhã do dia seguinte, estava na escola. Amante de cavalos, Alberto é o único cego endurista reconhecido pela Federação Eqüestre Internacional. Em 2001, foi vice-campeão brasileiro. Compete com um acompanhante ao lado, mas encara barrancos e declives guiando-se pelo canto dos pássaros e pelo som do vento da copa das árvores. "Sou bom nisso", diz. Participou de 11 campeonatos no País e, em 2003, sua performance foi reconhecida internacionalmente. Recebeu um convite do então presidente dos Emirados Árabes Unidos, Zaied Bin Sultan Al-Nahayan, para uma prova de 120 quilômetros no deserto de Abu Dabi. Deixou a prova depois de cinco horas e 96 quilômetros. Seu cavalo passou mal. "A passagem por lá foi uma beleza. Tinha motorista e Mercedes à disposição, dei entrevista para a BBC e para um canal francês." Ser cego está tão incorporado à vida que, às vezes, ele passa um mês sem se lembrar da deficiência: "Não tenho mais momentos de depressão do que a maioria das pessoas. Computo muito mais realizações do que fracassos."