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SELEÇÃO
No livro baseado em letras de
Chico Buarque não há nenhum autor carioca

A produção literária registra inúmeros livros inspirados em obras já existentes – o primeiro exemplo a vir à mente é “Ulisses”, de James Joyce, que tem como ponto de partida a “Odisseia”, de Homero. Mais recentemente, o espanhol Enrique Vila-Matas usou como mote o conto “Bartleby, o Escrivão”, de Herman Melville, para escrever o romance “Bartleby & Companhia”. Muita gente, aliás, acredita que hoje não se faz mais arte sem levar em conta a tradição. E se, num movimento oposto a essa inspiração natural, escritores fossem convidados a criar obras a partir de outras? Essa é a ideia por trás de dois livros lançados no Brasil – só que, agora, o modelo para essas narrativas são canções populares. São eles “Essa História Está Diferente – Dez Contos Para Canções de Chico Buarque” (Companhia das Letras) e “Como Se Não Houvesse Amanhã – 20 Contos Inspirados Em Músicas da Legião Urbana” (Record).

A leitura dessas duas compilações é uma experiência nova. Como as músicas de Chico Buarque e da Legião Urbana são muito conhecidas, o leitor avança as páginas desejando se deparar, enfim, com uma referência aos versos da canção que tem em mente. Alguns autores seguem à risca a letra do compositor, como Luis Fernando Verissimo, que escolheu o samba “Feijoada Completa”, de Chico. A música faz menção à volta dos exilados, mas Verissimo preferiu narrar uma crise conjugal. A feijoada do sábado, que o marido pede à mulher para preparar, seria a gota d’água. “Vai chegar todo mundo com uma fome e uma sede de anteontem”, diz o homem para a companheira, pelo telefone, como na canção.

No entanto, esse não é o procedimento mais frequente nos dois livros. No conto “Tempo Perdido”, que Tatiana Salem Levy escreveu inspirada na música da Legião Urbana, trechos da letra aparecem aqui a ali. “Acreditavam ter todo o tempo do mundo” ou viam “o sol das manhãs tão cinza”, se diz dos amantes separados pela ditadura militar numa total reinvenção do conteúdo da canção. Outro exemplo do afastamento da situação sugerida pelo compositor é “O Direito de Ler Enquanto se Janta Sozinho”, do escritor argentino Alan Pauls. Os versos de Chico Buarque que serviram de modelo (“Ela Faz Cinema”) aparecem apenas como ringtone do celular de uma adolescente – cujo pai a espera diante da escola e suspeita que ela tenha um caso com o professor.

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LEGIÃO DE FÃS
Compilação inspirada em versos de Renato Russo reúne
escritores fanáticos pela banda

O livro “Essa História Está Diferente” foi organizado pelo jornalista e escritor Ronaldo Bressane, que escolheu autores não cariocas, uma forma de fugir da cor local. O time se completa com o mexicano Mario Bellatin, o moçambicano Mia Couto e os brasileiros João Gilberto Noll e André Santana, entre outros. “Pensei que a maioria ia cair para o lado feminino, mas isso não aconteceu”, diz Bressane. No caso do livro “Como Se Não Houvesse Amanhã”, organizado por Henrique Rodrigues, a exigência era que os escritores fossem fãs da Legião Urbana. Isso explica os novos nomes entre os 20 selecionados, como Marcelo Moutinho, Miguel Sanches Neto e João Anzanello Carrascoza. Rodrigues não vê problema em relação ao criticado fato de os autores estarem trabalhando sob encomenda: “Isso profissionaliza a atividade literária no Brasil.”

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Confira a seguir trechos de dois contos retirados das obras mencionadas na reportagem

Conto “Lodaçal”, de André Sant’anna, do livro “Essa História Está Diferente – Dez Contos Para Canções de Chico Buarque”, organizado por Ronaldo Bressane

Brejo da Cruz
Chico Buarque

a novidade
que tem no brejo da cruz
é a criançada
se alimentar de luz

alucinados
meninos ficando azuis
e desencarnando
lá no brejo da cruz

Eletrizados
cruzam os céus do brasil
na rodoviária
assumem formas mil

uns vendem fumo
tem uns que viram jesus
muito sanfoneiro
cego tocando blues

uns têm saudade
e dançam maracatus
uns atiram pedra
outros passeiam nus

mas há milhões desses seres
que se disfarçam tão bem
que ninguém pergunta
de onde essa gente vem

são jardineiros
guardas-noturnos, casais
são passageiros
bombeiros e babás


já nem se lembram
que existe um brejo da cruz
que eram crianças
e que comiam luz

são faxineiros
balançam nas construções
são bilheteiras
baleiros e garçons

já nem se lembram
que existe um brejo da cruz
que eram crianças
e que comiam luz

Ocaso, e o Brejo da Cruz é uma cidade, é uma aldeia, é um lodaçal, é umas quatro/cinco casas, é nada, é um brejo em cima de um campo de futebol submerso pelo lodaçal com uma cruz bem no meio do círculo central que nunca fora traçado no campo de terra seca rachada, onde antigamente nunca chovia, antes, até o dia em que um cara, meio padre, meio cangaceiro, mandou acabar com esse negócio de futebol e levantar uma cruz bem em cima do círculo central inexistente daquele lugar meio aldeia, meio campo de futebol, meio nada, fazendo com que, depois de erguida a cruz, passasse a chover demais sobre o campo de futebol sem círculo central, e só sobre o campo de futebol sem círculo central, por milagre de Deus, que existe, fazendo com que o meio nada, o meio cidade de quatro/cinco casas, se tornasse um brejo com uma cruz no meio e sapos, onde chove muito, chove sempre, chove o tempo todo, sem parar, em cima da cidade, da aldeia, das quatro/cinco casas, apenas lá, em cima do campo de futebol lodaçal e quase nunca ao redor, um redor onde só chove raramente, onde há nada, onde há algumas poucas plantações de maconha de uns caras que só aparecem de vez em quando para colher maconha, para plantar maconha, para tratar mais ou menos da maconha e só.

Ocaso, e o Chiquinho e o Toninho ainda não comeram nada neste dia, já que o Chiquinho e o Toninho e todo mundo no Brejo da Cruz só comem sapo, já que nem rã há naquele brejo com uma cruz no meio, e o Chiquinho e o Toninho não aguentam mais comer sapo, mas é ocaso e a lua está nascendo cheia, e há a luz da lua e o Chiquinho e o Toninho sentem um troço por dentro, que não é fome, já que o Chiquinho e o Toninho já estão acostumados a não comer sapo, que é uma comida que enjoa logo, que é um bicho que quase não tem carne, já estão acostumados a não comer, já estão acostumados a comer nada, já estão ficando acostumados a sentir um troço por dentro, que é um troço que dá neles sempre que a luz da lua aparece cheia no ocaso. O Chiquinho e o Toninho não comeram nada, o Chiquinho e o Toninho nem têm vontade de comer nada.

Ocaso, e o Chiquinho e o Toninho andando nada adentro, nada afora, o sol sumindo, a lua subindo cheia, aquele troço, aquela luz, lua e estrelas.

Lua, estrelas, o Chiquinho, o Toninho e o maconhal já meio afastados do Brejo da Cruz.

Nas bandas do Brejo da Cruz, criança é nada. Tudo nada. A lua, as estrelas e os pés de maconha seriam nada também, não fosse o troço que dão no Chiquinho e no Toninho e no pai do Chiquinho e no pai do Toninho e em todo mundo que é criança ou já foi criança no Brejo da Cruz.

Pode ser muito bom ser nada. E o bom de ser nada, o bom de só se ter sapo pra comer, o bom do nada é que tudo tanto faz, mas normalmente não é muito bom. Tudo, no nada, é vida interior. Poesia isso?

Luz da lua e das estrelas?

O Chiquinho é bem fissurado, gosta demais desse troço que dá, e acaba de puxar, do shorts meio rasgado, meio nada, aquela página inteira de jornal de há quinze anos, cheia de notícias e opiniões e de um monte de palavras e significados que, para o Chiquinho, significam nada, e o Chiquinho vai direto no pé de maconha, pega um punhadão de maconha assim, rasga a página de jornal no meio, joga a metade do punhadão de maconha assim numa metade da página de jornal e a outra metade do punhadão de maconha assim na outra metade da página de jornal.

Noite, luz da lua cheia, o Chiquinho, o Toninho e dois charutões enormes de maconha sem valor comercial.


No Brejo da Cruz, mato vale nada, custa nada. É só catar no pé, quanto quiser, quanto o Chiquinho quer. E o Toninho de noite sob a luz da lua. No Brejo da Cruz, maconha não tem preço, custa nada. O problema é fósforo. O Chiquinho e o Toninho têm uma caixa com três palitos. Depois, só Deus sabe… Deus existe, mas não se importa com palitos de fósforo, não se importa com crianças sem comida sentindo um troço, e caixas de fósforos só aparecem no Brejo da Cruz quando aparece alguém de alguma fazenda meio distante para escravizar alguma criança. Nessas raras ocasiões, as crianças deixam de valer nada e passam a valer um punhado de caixas de fósforos, um punhado de maços de cigarros, um punhado de qualquer coisa que valha um pouco mais do que nada. E o problema das caixas de fósforos no Brejo da Cruz é a baixa produção de crianças próprias para o consumo. Quatro/cinco casas, quatro/cinco famílias é muito pouca matéria-prima para a produção de crianças próprias para o consumo.

Então, caçadores de escravos, progresso e caixas de fósforos aparecem muito pouco mesmo no Brejo da Cruz.

 

Conto “Faroeste Caboclo”, de Carlos Fialho, do livro “Como Se Não Houvesse Amanhã – 20 Contos Inspirados Em Músicas da Legião Urbana”, organizado por Henrique Rodrigues

Traiçoeira. É assim que muitos definem esta cidade. Desde que cheguei, as pessoas tentam me alertar. Mas eu não dava importância. Pelo contrário, sempre a defendi da má fama, das acusações de que era simétrica demais, vazia demais, sem graça demais. Eu fechava os olhos para a secura, torcia a boca para os lábios rachados, tapava os ouvidos para os “sabe-com-quem-estáfalando?” e empinava o nariz para as autoridades de araque que pululam no DF. Eu nunca me importei, e até gostava, dos endereços fórmulas matemáticas e enxergava em cada bloco, em cada superquadra, uma colorida beleza disfarçada de cinzenta sisudez.

Talvez esse romantismo todo venha da minha vida anterior. O homem que eu era antes de chegar aqui não costumava ganhar. Nasci em Ipanguaçu, no Rio Grande do Norte. Família pobre, mas com um pedacinho de terra. Quando a gente não perdia tudo na seca, perdia nas chuvas e inundações. O jeito era tomar dos outros. Roubava frutas e galinhas dos fazendeiros, roubava na igreja, roubava a inocência das meninas. Até que meu pai me mandou pra capital. “No interior não tem o que você fazer. Vai acabar engravidando uma moça dessas e não vai poder sustentar, pois nossa família não tem um pau pra dar num gato.” Aí eu fui pra Natal estudar e morar com uma tia que eu nem sabia que existia.

Morei com ela um tempo. Trabalhava entregando jornal e estudava à noite num colégio público. Eu já tinha uns 16 anos nessa época e começava a atrair olhares e atenções. Estava me tornando um homem de bela composição corporal. Uma vez, no jornal, quando fui receber o salário, alguém me observou mais demoradamente e, quase sem querer, correspondi.

Fomos ao seu apartamento na praia. Tomamos uísque. Conversamos um pouco, mas eu não estava muito à vontade. Ainda exibia um jeito irremediavelmente tímido de jovem interiorano.

Eu sabia que não deveria estar ali. Muitos não entenderiam minha decisão. Mas é como dizem: a necessidade faz o homem, e o senhor Toninho Vieira era o principal e mais influente colunista social de Natal. Famoso por suas festas reunindo a nata da sociedade, em que cobrava caro pela entrada a pretexto de caridade mas embolsava toda a grana, conhecido por um programa de TV ridículo em que uma das atrações era sua página pessoal no Orkut, e frequentemente visto em fotos de jornal em que se exibia tomando banho de banheira com o seu cachorro, ele causava repulsa em boa parte das pessoas. De rotunda silhueta, dava a impressão de estar sempre suado. Sua atitude arrogante revelava uma pessoa medíocre que gostava de humilhar subalternos. Por tudo isso, eu sabia que ia ser dureza comer aquela bunda gorda e flácida.

Depois de alguns uísques, eu já estava mais solto e, ciente do que me trouxera ali, baixei o zíper. Quando cheguei perto, ele falou: “Vira. Hoje a mulher é você.”

Não quero falar muito sobre os anos seguintes. Direi apenas que cursei direito na universidade particular graças a uma bolsa que o gordo conseguiu. Também nunca me faltou grana para me virar por aí, nem pra minhas farras. Acabei me envolvendo com drogas pesadas. Cheirava e tomava de tudo para suportar as minhas noites. Parecia cocaína, mas era só tristeza.

Saí da casa da minha tia quando o colunista me convidou para viver com ele. Parei de enviar notícias para o meu pai. Eu tinha Como medo de que ele soubesse de tudo pelo tom da minha voz. Morando com o gordo asqueroso, passei a receber mais dinheiro, fora algumas notas graúdas que eu roubava de sua carteira depois que ele dormia e roncava como um porco. Juntei dinheiro para poder viajar. Eu e minha solidão.

Minhas brigas com o Toninho eram cada vez mais frequentes. Ele queria me levar para as festas e restaurantes chiques, me apresentar publicamente como seu “amigo”. Eu agora já era um rapaz apresentável, de 21 anos, que ele cultivava havia tempos.

Era a hora de exibir sua conquista. Eu não queria. Já bastava foder com ele e chupar aquele pau pequeno de velho gordo.

Mostrar a cara já era demais. Permiti, no entanto, que ele fosse para a minha festa de formatura. Fiz um prólogo, dizendo que agradecia tudo o que ele fizera por mim, que eu só estava me graduando por sua causa, que eu sabia como agradecer e que, depois da entrega do diploma, teríamos uma noite inesquecível em seu apartamento.

E assim foi. Após a cerimônia, quando ficamos a sós na sala, coloquei uma música que ele gostava e fui tirando a beca, tirando a blusa de dentro da calça, desafivelando o cinto. Ele já sorria contente quando desferi o primeiro golpe. Aumentei o volume para os vizinhos não ouvirem o seu choro copioso de colunista social barraqueiro. Apliquei-lhe uma surra inesquecível por todos os anos de sodomia e humilhações. Ele sempre soube que eu estava com ele pelo dinheiro e fazia questão de deixar isso bem claro em todas as oportunidades possíveis. Quando seu corpo já estava todo marcado das chicotadas que dei e o sangue coloria o tapete branco, comecei a socar seu nariz, chutar as costelas, dar vigorosas tapas em sua fuça, xingar e cuspir. Saí de lá rápido, direto para a rodoviária.


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